segunda-feira, 1 de novembro de 2010

GONÇALO M. TAVARES: UMA VIAGEM À ÍNDIA


A linguagem é, para já, um mero instrumento. Aprendemos a utilizá-la para nomear os objectos ausentes, para os descrever, para narrar o que aconteceu outrora, ou o que poderá acontecer. (Ou, redundantemente, o que está a acontecer...)

Mas é possível cairmos no interior da linguagem. Absorvidos por ela, como por um profundo buraco negro, descobrimos, no seu interior, a possibilidade de se criar um mundo que só a ela própria pertence, e que pouco tem que ver com o mundo que ficou lá fora. (Claro, também eu duvido que no interior de um buraco negro se possa criar seja o que for. É, sem dúvida, uma analogia claudicante...). Não só a linguagem, nesse momento, deixa de «representar» o exterior, como nem sequer o tem como vaga referência. Tal como a música, a que podemos acrescentar uma «letra», mas tem, no entanto, um sentido próprio, independente dessa letra e do que as palavras lhe sobreponham, também a linguagem é capaz de criar música, pôr-se face a face consigo, testar os seus limites, subvertê-los. Descobrir um sentido, uma plenitude, em si e a partir de si. E, na minha experiência quase autodidáctica da questão, isto é a poesia.

Uma Viagem à Índia apresenta-se como sendo um poema. Não tenho dúvida de que é, antes de mais, um romance. A história de uma personagem - Bloom - que demanda a Índia, em busca de uma mulher e de sabedoria. Poderia ser um romance que se quisesse assumir, num gesto irónico e paródico, nas formas da poesia. Mas tratar-se-á disso? Ou de outra coisa, um poema, efectivamente, uma experiência de criação a partir do Verbo, à imagem do Génesis, Canto, Revelação?

A resposta a essa pergunta principia no momento em que nos apercebemos de que o texto em causa não poderia ter sido escrito de outro modo. Com palavras diferentes das que são usadas. Que história ali fica, se a despojamos da linguagem em que ela se oferece? Poderíamos transpô-la para outro registo, para outro tipo de discurso, resumi-la, abreviá-la? «Tendo a Índia como derradeiro objectivo, Bloom encontra-se com três homens, um pai e seus dois filhos, que o querem assaltar...». Não é possível, perde-se o essencial: não há nada para contar fora das palavras com que Gonçalo M. Tavares reinventa Bloom, e vai inventando as peripécias de que se faz a sua viagem impossível. Tudo, ali, é literário: Lisboa, Londres ou Paris, sobretudo a Paris que vemos aparecer diante de nós, não são as cidades geograficamente reais, mas um concentrado de sonho e mito: «Ah! Paris! Em nenhuma cidade se está mais perto de Paris que em Paris. Daí a sua grandeza.»

Em um sentido muito similar àquele em que Walter Pater proclamava que toda a Arte aspira à condição de música, poderíamos dizer que, desde o início, toda a obra de Gonçalo M. Tavares aspira à condição de poesia. São já poemas os seus romances, em que tudo se transformaria se mudasse de habitat, quer dizer, se fosse arrancado à sua forma de exprimir, ao modo como a história é contada. Se o desligássemos do acto linguístico de contar. A linguagem nunca é pretexto: porventura, a matéria sim, essa será pretexto para o exercício da linguagem.

Obviamente, Uma Viagem à Índia é um texto que não deixa pedra sobre pedra. Trata-se de sabotar todos os lugares e livros e categorias que nos habituámos a frequentar tranquila e rotineiramente, instaurando-se um maravilhoso universo paralelo, atemporal, meta-literário, onde improváveis sequências de sentido nos surpreendem continuamente. É uma odisseia. Mas uma odisseia totalmente humana: porque, e isso nos é lembrado e repetido, a aventura narrada não diz respeito aos deuses; o mundo dos deuses fica longe e longe deve permanecer. Aqui, fala-se do que ocorre ao nível do olhar humano. O próprio Destino não é senão uma paródia. Falar-se-á em profecia ou em adivinhação, mas, em última análise, nada há para se revelar; o misticismo é um logro; o sonho da Índia acabou sendo esvaziado pelo Ocidente.

Numa entrevista concedida ao JL, Gonçalo M. Tavares explicava que, quando se é dextro, é preciso tentar escrever com a mão esquerda, ou seja, recusar o que se aprendeu a fazer demasiado habilmente. É preciso experimentar o que se não experimentou. Bem ou mal, só isso vale a pena. Por isso, Uma Viagem à Índia é tudo o que não esperávamos e, onde quer que o esperássemos, se recusa a comparecer. Romance e poesia, mito e filosofia, revisitação e despedida, reconhecimento e exploração de desconhecidos percursos no meio dos que julgávamos conhecer, habilidade e desconstrução de toda a habilidade em que assentáramos, aventura e desventura, é uma obra daquelas que se percebe que algo marcam, algo apontam, algo trazem. Se não a Índia, a impossibilidade da Índia. Se não o que a Índia é, talvez a ideia do que já não pode ser.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

AS QUYBYRYCAS: IONANES GARABATUS, ALIÁS JOÃO PEDRO GRABATO DIAS




Agora que está prestes a ganhar uma incontornável - e porventura justíssima - visibilidade o último livro de Gonçalo M. Tavares, um poema em dez cantos, à maneira de Os Lusíadas, apetece-me contrapor-lhe um outro longo poema, anterior, igualmente extraordinário, porém invisível.

Hei-de talvez ainda falar de Uma Viagem à Índia, de GMT. Mas é uma obra que não carece de mais publicidade do que aquela que já a sufoca: tem um prefácio de Eduardo Lourenço; dedicam-lhe a capa e diversas páginas do JL: incensam-na; há-de estar mencionada nos próximos magazines literários. Já o poema a que me quero referir, escrito por um poeta quinhentista, Ioannes Garabatus, com 11 Cantos, intitula-se As Quybyrycas e parece ter-se sumido no tempo. Haverá aí quem se lembre deste «poema éthyco em outavas, que corre sendo de Luís Vaaz de Camões em Suspeitíssima Atribuiçon»? Pois é uma verdadeira obra-prima, a principiar logo pelo jogo entre falsidade e verosimilhança, pelas piscadelas de olho, pelo carácter satírico, enganador e burlesco, e político, como se verá, que o sustentam.

Porque Ioannes Garabatus não existe, e o poema não data de Quinhentos, ao contrário do que garante, mas, mais prosaica e proximamente, de 1972.
O seu autor é João Pedro Grabato Dias; por sua vez, João Pedro Grabato Dias não existe senão como heterónimo do pintor e poeta António Quadros. No entanto, este longo texto (1180 estâncias), que começa por ser uma brincadeira - algo, no limite, semelhante à obra de um falsário, ainda que, em rigor, toda a literatura passe por esse jogo entre o verdadeiro e o falso - constrói-se como uma obra maior, «uma epopeia satírica e de sentimento anti-epopeico», que reconstitui, aparentemente, uma época, com o intuito de que lhe reconheçam os sinais da contemporaneidade, as dores, os males e os erros de Portugal dos anos Setenta, anterior ao 25 de Abril.

Todavia, está lá o rigor complexo da poesia superior, a beleza da expressão e do sentimento, o cuidado e o talento postos numa Arte que se não desleixa e não se deixou confundir, em momento algum, em excerto algum, com a mera propaganda política.

P.S.: Embora não haja sido deliberado, não deixa de ser interessante que a pesquisa, na internet, por imagens que ilustrassem o presente post, acabasse mostrando a diferença entre a visibilidade e a invisibilidade respectivas das obras e dos autores que refiro, através da brutal diferença entre dimensões e cores (ou ausência de cor) num e noutro caso.

domingo, 24 de outubro de 2010

UM TRIO INVISÍVEL

Três livros invisíveis. Encontra-los-ão, porventura, em feiras, em alfarrabistas, na Wook.



O primeiro é o delicioso Contos de Gin Tónic, de Mário-Henrique Leiria.

Uma incursão pelo surrealismo, com alguns contos brevíssimos, quase meros haiku, inesquecíveis poemas (lembram-se da velha que comia ameixas?), outros menos breves, que marcarão, todos eles, definitivamente, o leitor que se aventure.




O segundo, Maus, comic de Art Spiegelman, em que o humor não é senão a capa que envolve uma história dolorosa, pode ser achado em inglês: mas a belíssima tradução portuguesa, da Difel, já não existe em nenhum lado.

Um Estranho Numa Terra Estranha, com o seu título perfeito,
impressionante e dramático, é o romance, que nunca esquecerei, de um marciano que, ao contrário de nós, terrestres, se concentra total e absolutamente em cada coisa que está fazendo num dado momento. Recordo particularmente a descrição de um beijo «trocado» com uma mulher terrestre e apaixonada, que nunca havia experimentado uma tão intensa experiência: naquele momento, para ele, só o beijo existe; sem distracções, sem lapsos, sem a menor forma de ausência: a íntegra entrega!

sábado, 23 de outubro de 2010

SUBSÍDIOS PARA UMA LISTA DE LIVROS INVISÍVEIS

Não é verdade que os livros não dêem dinheiro. Dão. Talvez não todos os livros e talvez não aos autores. Mas se não fosse um objecto de consumo capaz de fazer circular muita massa, não haveria tantos comerciantes de poucas letras a meter-se no negócio, a comprar direitos, a comprar escritores, a comprar livrarias, a comprar editoras, a absorver, a devorar.

Numa simples viagem pela galáxia dos blogues, descubro vários, alguns de grande qualidade, que se dedicam aos livros. Observo que, em geral, se trata de comentar os livros da moda, ou seja, os que estão aí, acabados de ser lançados, os que as editoras e as livrarias querem vender. Propositadamente ou não, conscientemente ou não, esses blogues reduzem-se, pois, a veículos de um monumental marketing. Assim funciona o sistema.

Isto só me enerva porque, entretanto, os livros que não estão na moda; os que não vêm agora mesmo das gráficas, ainda frescos de tinta; os que não acabaram de ser referidos na revista Ler, ou na Actual, do jornal Expresso, ou na horrorosa Os Meus Livros -, aqueles outros, permanecem completamente ignorados e esquecidos. Procurei, ultimamente, o Don Tranquilo, e assustei-me com tamanho recalcamento: não o conheciam; pediram-no à distribuidora, que mandou dizer, muito tempo mais tarde, que estava esgotado. Vale a pena mencionar o episódio porque, antes, já andara, atarantado, à procura de Maus, na tradução portuguesa, e mandaram-me passear; quis um romance de Ray Loriga, mesmo na Língua-Mãe do autor, e nada. Experimentem perguntar por Herzog, de Bellow. Ou por Fahrenheit 451, de Bradbury. Ou por Um Estranho Numa Terra Estranha, de Robert Heinlein, que foi como uma Bíblia para os jovens que nós éramos.

O que eu penei por um certo livro de Mario Vargas Llosa (A Cidade e os Cães), antes de o «agraciarem» com o Nobel. Agora, claro, reeditaram-lhe a obra completa. Na altura, tropeçava em Gabriel Garcia Marquez por todo o lado, que não me interessava, e mal sabiam quem fosse Llosa.

Estou, no fundo, a elaborar a minha lista alternativa, uma lista invisível, de títulos que, por enquanto - até que haja uma nova tradução, ou algum prémio retrospectivo, ou a morte do autor, que tende a tornar a sua obra em best-seller - não interessam às editoras nem às livrarias. Nem ao menino Jesus. Esgotados? Não acredito. Mais facilmente os terão queimado, para não incorrerem no crime de lesa-despezismo que é manterem-nos em depósito!

E é assim que as livrarias nos apresentam uns suspeitos tops de vendas, que duvido que não sejam forjados em função de quem pague mais, como parte deste marketing que nos cria apetências e condiciona o que devemos ler, ao mesmo tempo que nos desaparece da vista - e do coração, e do pensamento - o que poderíamos ler.

Não consigo fugir a este sistema. Nem quero. Mas tento não lhe estar submetido. Comprei, por exemplo, Livro, de José Luís Peixoto, e estou já à espera do próximo de Gonçalo M. Tavares. Mas, entrementes, é claro, faço questão de me não me deixar manipular por essa agenda. Não que tal resistência tenha, em si, alguma importância. Ah, não se leia este texto como um manifesto. Já se entendeu que não estou do lado daqueles que recusam ler o que «todo o mundo anda a ler». Só não abdico de continuar procurando e de, aqui, falar acerca daquilo que ninguém anda a ler. Daquilo que está a um passo de nos desaparecer das memórias curtas.

De cada vez que consigo devolver, à consciência, algum livro recalcado, seja porque mo emprestaram, seja porque o trouxe de uma biblioteca, ou porque existia um depósito em que restava um derradeiro exemplar, recordo esta verdade simples: a literatura é infinitamente mais do que aquilo em que o mercado toca.

AKSÍNIA


Pela escrita de um homem, O Don Tranquilo é um romance extremamente feminino - e feminista, no melhor e no mais nobre sentido da palavra.

Aksínia é uma personagem fortíssima. Uma palpitação em busca do seu sonho, emergindo e erguendo-se, não diria contra a malvadez masculina, porque, na História da Luta entre Homens e Mulheres não existem, propriamente, os bons e os maus; mas, sem dúvida nenhuma, sobre o fundo primitivo da incompreensão masculina, e sobre o fundo da cobardia dos homens: mesmo os que não detêm o poder, como estão num mundo de homens, acertam-se com ele ou, pelo menos, mais facilmente se conformam e baixam a cabeça.

«[Aksínia] encarou bem em Grigóri e impressionou-a o fulgor seco e inquieto dos olhos dele.
«- ... Acho que devíamos pôr ponto...
«Aksínia vacilou. Os dedos dela crisparam-se num pé enrolado de campainhas. De narinas frementes, esperava o fim da frase. O fogo da angústia e da impaciência abrasava-lhe a cara, ressequia-lhe a boca. Cuidava ela que ele ia dizer: «... pôr ponto na tua vida com Stepane.» Mas ele passou a língua, com ar penalizado, pelos lábios secos, que a custo se lhe moviam, e terminou:
«- ... pôr ponto nisto. Hã?»

Esta passagem respeita, na minha interpretação, à diferença de arrebatamento e qualidade de amor, quando este se conjuga no masculino e quando se conjuga no feminino. (Não generalizemos, apesar de tudo); não que se não tenha o direito de abdicar ou recuar, por muito que se haja amado: mas que sentir (ou, concretamente: que sente Aksínia) quando o próprio objecto do sonho não está à altura do sonho?

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

MIKAHÏL CHOLOKHOV: O DON TRANQUILO


É, sem dúvida, mais do que uma fórmula de cortesia, dizer que leio os meus leitores e me deixo guiar por eles. Existe, por exemplo, um livro que não viria talvez a reler se mo não tivessem mencionado recentemente: Jane Eyre; um outro que me passaria totalmente despercebido se mo não apresentassem como a não perder: Diário dos Infiéis, de João Morgado...

Na mesma linha, há um autor clássico que já tinha chamado por mim, mas a que, na altura (dependendo unicamente do meu próprio critério), resisti, e que acabei não convidando para casa: Mikhaïl Cholokhov.

Se, por coincidência, não estivesse agora, justamente, a redespertar para a alma russa, retomando Pushkin, Turgueniev, Tchekhov, Tolstoi, Dostoievski, Bulgakhov,

Se, ao mesmo tempo, Milú não falasse, no seu blogue (Rússia Show) acerca do Don Tranquilo,
Se o modo como ela carinhosamente iluminou Aksínia, personagem desse romance, me não tocasse como tocou

teria eu, alguma vez na vida, vindo a ler o Don Tranquilo (ou «sereno», ou «silencioso»), de Cholokhov? Talvez. Quem sabe? Mas a verdade é que as coincidências se reúnem, como conjugações auspiciosas, para acender um interesse.

Don Tranquilo é uma obra gigantesca. Como, aliás, uma grande parte da literatura russa. Pessoalmente, apraz-me a sensação de ter ainda muito para ler, por voraz e veloz que seja como leitor. Este tem diversos volumes. Ainda estou nas primeiras páginas do primeiro deles. E, ah, sigo escrupulosamente a sugestão de Milú: leio-o na Livros do Brasil, que trouxe, numa edição já muito antiga, do depósito de uma biblioteca.

No início, tudo se move lentamente. Demasiado lentamente. Dir-se-ia que se não move, sequer. Tal qual a própria tranquilidade do rio Don, também este romance parece arrastar-se com uma serenidade pouco audaz. Somos introduzidos nas famílias, insinua-se uma atracção ilícita, vai-se descrevendo uma paisagem humana, impõe-se a omnipresença do rio. Limite, paisagem, sustento, amigo pacífico, inimigo implacável. Um breve sobressalto ocorre quando, a propósito de uma pesca, em grupo, no meio da escuridão fria e chuvosa, uma personagem se perde, outra já não responde aos apelos, amedrontam-se, choram, desesperam.

Mas só com o desenvolvimento de Aksínia se rasga a pacatez do mundo. Só quando esta personagem ganha espaço, ganha sentimentos, ganha vida. Como se, num corpo concentrado na sua própria digestão, se introduzisse, bruscamente, o ritmo e a juventude da cafeína: rebeldia, inconformismo, raiva, amor, tudo se concentra no espírito e no corpo desta jovem - violada, ainda adolescente, pelo pai, sistematicamente espancada e ignorada, mais tarde, pelo marido, abusada pela sogra, invejada pelas outras. Aksínia é, como Antígona, o símbolo da mulher que sempre esteve submetida ao poder e a quem o poder maltratou: e que já só pode sair desse passado submisso através da exigência que não recuará diante de poder algum, invertendo, se necessário, todos os valores e todos os códigos, para reclamar o que, agora, sabe que lhe pertence por direito; e, a quem lhe disser «Espera aí, desavergonhada!», responderá, sem medo:

«Não tenho nada que esperar. Tu não és meu pai. Vai para donde vieste! O teu Grishka, se me apetecer, como-o com os ossos todos, e não tenho contas a dar a ninguém!... Ora aí tens. Engole lá! Gosto do Grishka. E depois? Queres-me bater?... Vais escrever ao meu marido?... Podes até escrever ao atamane. Mas o Grichka é meu! Meu! Meu! É meu e há-de-o continuar a ser!..

E admiramo-la de imediato - «de imediato» significando: antes de medir as consequências do seu gesto, do seu acto, do seu grito; antes de decidir se estamos eticamente de acordo; antes até, talvez, de compreender seja o que for: antes de a compreender inteiramente.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

BIBLIOTECAS CHEIAS DE FANTASMAS

«Em cada livro que se abre pela primeira vez há um efeito de "cofre arrombado". Sim, é exactamente isso, o leitor frenético é como um assaltante que passou horas e horas a escavar um túnel para chegar à sala de cofres de um banco. Ele encontra-se diante de centenas de cofres todos parecidos e vai abrindo-os um a um. De cada vez, o cofre finalmente aberto perde o seu anonimato para se tornar único: há um que tem quadros lá dentro, outro esconde maços de notas, um outro jóias, ou cartas atadas com uma fita, gravuras, objectos sem valor, baixelas de prata, fotografias, moedas antigas, flores secas, dossiês, copos de cristal, brinquedos de criança etc.»

Jacques Bonnet, Bibliotecas Cheias de Fantasmas

terça-feira, 19 de outubro de 2010

OS IMPERDÍVEIS DA LÍNGUA PORTUGUESA: UMA LISTA PESSOAL (E PORVENTURA INTRANSMISSÍVEL)

Não é que, de outros autores, e mesmo destes, não houvesse mais e melhores possibilidades, diferentes «imperdíveis»: mas os livros que elenco são, para além dos meus predilectos, talvez um pouco menos divulgados do que a maioria das alternativas. (Isto explica que, gostando muito de Os Maias ou de O Primo Basílio, tenha preferido, de Eça, o prodigioso, mas menos aclamado, A Capital...)


A Lírica de Camões
Uma grande parte dos poemas de Bocage
Clepsydra, Camilo Pessanha
Eusébio Macário, Camilo Castelo Branco
A Capital, Eça de Queirós
A Correspondência de Fradique Mendes, Eça de Queirós
Contos, Fialho de Almeida
Memórias Póstumas de Brás Cubas, Machado de Assis
Angústia, Graciliano Ramos
O Livro do Desassossego, Bernardo Soares
A Tabacaria, Álvaro de Campos
Ode Triunfal, Álvaro de Campos
Mau Tempo no Canal, Vitorino Nemésio
Sinais de Fogo, Jorge de Sena
Aparição, Vergílio Ferreira
Um Amor Feliz, David Mourão-Ferreira
O Ano da Morte de Ricardo Reis, José Saramago
Ó, Nuno Ramos
Um Jogo Bastante Perigoso, Adília Lopes
Toda a Sophia
Últimos Poemas, Nuno Moraes
Dramaticamente Vestida de Negro, Fernanda Botelho
A Fenda Erótica, Hélia Correia
Contos de José Rodrigues Miguéis
As crónicas de António Lobo Antunes (mas nenhum livro dele em particular)
Os Degraus de Parnaso, M. S. Lourenço
Os Passos em Volta, Herberto Helder
Boca Bilingue, Ruy Belo
Quatro Últimas Canções, Vasco Graça Moura
Jerusalém, Gonçalo M. Tavares

Haveria outros? Pode ser. Não estão aqui? Bem, se calhar esqueci-me. Ou, se calhar, de facto, não os considerei imperdíveis. Ainda nos casos em que os aprecio...

JOSÉ MAURO DE VASCONCELOS: MEU PÉ DE LARANJA LIMA, UM POST POUCO INTELECTUAL


Tecnicamente, não é difícil fazer chorar. Desde as tragédias da Antiga Grécia que um artista competente sabe que meios empregar. Se pensarmos bem, aliás, as fórmulas a que os blockbusters recorrem estavam já contidas na génese do Teatro Grego.

Recordo-me de um livro que tem merecido, julgo eu, pouca consideração por parte dos intelectuais exigentes. Meu Pé de Laranja Lima, de José Mauro de Vasconcelos, foi lido por mim quando tinha treze ou catorze anos; e sei que chorei ao longo de toda a leitura, desde as primeiras páginas, em que se entra no quotidiano de um garoto pobre, com uma incontrolável imaginação, reprimida por uma família que não tolera a sua criativa hiperactividade, até às últimas, que fecham essa narrativa do seu amadurecimento, num mundo muito duro, procurando alimentar, sorrateiramente, os sonhos, as fantasias e os amigos que o possam ensinar a lidar com a realidade.

A leitura da infância de Zezé é, também, a compreensão do seu crescimento e da sua aprendizagem. Mas que quer isto dizer? Que «crescimento», que «aprendizagem» são esses? Ou que se aprende, em última análise, nesses ritos de iniciação, senão uma única coisa: que o princípio do prazer nunca vence em face do princípio da realidade? Que todas as fugas estão, a prazo, comprometidas? Que o jogo e a brincadeira não são senão, nas crianças, uma preparação para os futuros «jogos de poder» ou «jogos de dinheiro»? Que o sonho não comanda a vida? Que a tristeza se instala, que o desemprego não é uma brincadeira, que as árvores realmente não falam e que, se a partir de uma certa idade insistirmos em continuar dialogando com elas, nos encerram no hospício? Ou que os melhores amigos morrem?

Chorei durante a leitura deste livro. Saberia já que chorava, no fundo, por mim mesmo?

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

GOSTO DE LISTAS

No seu último livro, Livro de nome, José Luís Peixoto expõe a lista de títulos (em francês, o que, no contexto do romance, faz todo o sentido) que teriam constituído a educação literária de Sidonie, uma personagem:

Gigi, Colette
Le Rouge et le Noir, Stendhal
Le Dernier Jour d'un Condamné, Victor Hugo
La Montagne Magique, Thomas Mann
Lumière d'Août, William Faulkner
Madame Bovary, Flaubert
L'Éducation Sentimentale, Flaubert
Les Hauts de Hurle-Vent, Emily Brontë
Mrs. Dalloway, Virginia Woolf
Le Père Goriot, Balzac
L'Amant de Lady Chatterley, D. H. Lawrence
Les Aventures de Huckleberry Finn, Mark Twain
L'Étranger, Albert Camus
Bel-Ami, Maupassant
Les Frères Karamazov, Dostoievski
La Dame aux Camélias, Alexandre Dumas
Portrait de l'Artiste en Jeune Homme, James Joyce
La Philosophie dans le Boudoir, Sade
Frankenstein, Mary Shelley
Germinal, Zola
Paris est une Fête, Hemingway
Mémoires d'Hadrien, Marguerite Yourcenar
1984, George Orwell
Belle du Seigneur, Albert Cohen
Le Procès, Kafka
Voyage au Bout de la Nuit, Céline.

Admirável lista!

domingo, 17 de outubro de 2010

GUSTAVE FLAUBERT: MADAME BOVARY


No tom irónico da sua escrita, na captação do ridículo e do mesquinho em certas personagens, na provocação, quase escandalosa, que é o contínuo regresso aos temas tabu, mas também na infinita compreensão pela motivação oculta dos seus anti-heróis e das suas anti-heroínas que, mais do que seres pérfidos, deveríamos ver como humanos em choque com uma sociedade hipócrita e opressiva, o grande precursor de Eça de Queirós é, certamente, Gustave Flaubert.

Não vejo nada que menorize um autor no facto de ele ter sido literariamente formado pelos melhores. Só menciono a evidente paternidade porque, tendo descoberto (e admirado) Eça de Queirós primeiro do que Flaubert, foi com uma inquietante sensação de reconhecimento que, um dia, há muitos anos, principiei a ler Madame Bovary. E se pensei «Isto é digno de Eça de Queirós» é porque, afinal, Eça de Queirós fora digno do seu mestre.

Madame Bovary é um romance ardentemente emotivo. É, na verdadeira acepção da palavra, um Livro do Desassossego. Sucede sentirmos piedade do marido enganado, cheio de amor, bondoso e entediante, e irritarmo-nos com o descaramento ou com a insensibilidade de Emma. Mas não é possível não sermos, secretamente, seus cúmplices na identificação de um fogo ambicioso, o desejo desmedido de algo, uma sede de romantismo, uma carência de brilho, uma estranha saudade de futuro - um futuro sublime -, uma esperança e uma espera que o quotidiano contrariam e acinzentam.

Como Ana Karenina, ou Luísa, perdida de amor por seu primo Basílio, também a experiência de Emma Bovary é a do tédio perante um mundo irrepreensível, que, dela, só espera a felicidade da integração.

O que estala a superfície destas obras, mais do que a solução ética para que aparentemente nos encaminhariam, sob a forma da morte ou da queda da «criminosa», isto é, a punição social para o desvio, é a perturbadora sensação de que nada poderia, realmente, ter ocorrido diferentemente. De que nenhuma água aplaca a sede de vida. De que não há moral que justifique ficarmos, nem ideal que pague partirmos. Que somos seres irresolúveis. Ou que a nossa condição é a da escolha: e que, de um ou de outro modo, todas as nossas escolhas são erradas.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

À ESPERA DE CHOLOKHOV

Em Rússia Show, blogue de uma recente leitora do Profissão: Leitor, descobri a referência a Mikhaïl Cholokhov. Os textos de Milú, entusiastas e entusiasmantes, fizeram-me partir imediatamente em busca deste autor, Prémio Nobel, contudo relativamente pouco conhecido em Portugal.

Lembro-me de que a Europa-América (ou seria a Bertrand?) tinha editado, há muitíssimos anos, o romance O Don Tranquilo, em diversos volumes. Está esgotado. Encomendei a tradução no português do Brasil, que se chama O Don Silencioso. Aguardo-a.

Mas esta ligeira discrepância faz-me temer a tradução. A Milú, minha leitora, familiar com a língua russa, traduziria o termo do título por «tranquilo», ou por «silencioso»? E conhece a tradução da Ed. Record? Recomenda-a?

terça-feira, 12 de outubro de 2010

E ASSIM TERMINA O DESAFIO. FORAM OS MEUS 10 LIVROS EM 10 DIAS

10º dia.

10ª: Qual o livro mais velho que tem ou já leu?

Pertenceu a minha mãe; quando comecei a vasculhar estantes, esse livro já existia em nossa casa há muitos anos. Recentemente, reencontrei-o e trouxe-o comigo. É, curiosamente, uma peça de teatro. Não estamos a falar da obra mais «antiga» que já li (seria a Odisseia ou a Ilíada, naturalmente), e sim da edição mais «velha» que já me passou pela mão. Este volumezinho é dos anos quarenta.

The Winslow Boy, de Terence Rattigan.

Suponho que nunca foi traduzido: usávamo-lo para treinar a leitura do inglês.

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

VLADIMIR NABOKOV: DESESPERO

Era Wladimir Nabokov um jovem de 33 anos quando escreveu e publicou este romance, originalmente em russo. Ou seja: tão longe ainda da sua maturidade literária - se nos lembrarmos de que terá já 56 anos aquando da edição de Lolita, sua obra maior e perfeita - e, todavia, em Desespero, exibe já todos os indícios do seu talento, como sementes inatas. Aliás, a vários títulos, Desespero prenuncia Lolita: para já, na construção do narrador/protagonista, que, aliás, se chamava, no primeiro, Hermann Hermann (rascunho do célebre Humbert Humbert, do segundo): nos dois casos, uma personalidade doentiamente cheia de si, sem escrúpulos, no limiar de uma sinistra loucura. Porém, sobretudo na escrita, no estilo, no domínio da síntese, na elaboração de frases muito tensas, que são, frequentemente, verdadeiros achados, momentos inesquecíveis de leitura, adivinhamos, no jovem Nabokov, o génio em que Nabokov se tornará.

Numa descrição, Hermann emprega, inadvertidamente, uma palavra que detesta. Não por razões estéticas, mas psicológicas. Porque lhe desperta estranhos e fundos fantasmas, labirínticos e infinitos pavores. É a palavra «espelho». Quando dá conta dessa intromissão, interrompe o que vem contando, fala do significado que os espelhos têm para a sua mente distorcida, ensaia uma breve psicanálise. Depois, quer reatar, zanga-se com os leitores, acusa-os: «É difícil falar se nos interrompem constantemente». Esta passagem ilustra o humor de Nabokov, que me é tão caro.

É um humor que está presente na própria forma da escrita. Trata-se, de algum modo, do texto de um louco. Isso justifica, em parte, o seu carácter de meta-texto: Hermann questiona-se, a cada passo, acerca do que está escrevendo, põe em causa as palavras que escolhe, arrepende-se, propõe-se riscar períodos inteiros, decide não o fazer, embora deixando claro que estão errados e que não exprimem o que lhe interessava dizer: quem domina o acto de escrever não é já a sua razão, mas a memória, a cuja incapacidade pede constantemente contas. O terceiro capítulo, por exemplo, inicia com esta auto-interrogação: «Como começaremos este capítulo? Proponho diversas variantes para escolha.» E apresenta-as, uma por uma, pondo-as em confronto e distanciando-se criticamente de todas elas.

Ou seja, sob pretexto de um diálogo com o leitor, este romance é, fundamentalmente, um diálogo do narrador consigo mesmo - inquieto, sarcástico, manipulador, jogando com os dados a seu bel-prazer, afundando-se no negrume do seu inconsciente e debatendo-se com a cisão entre ele e si mesmo. Aquele outro, com que se encontra, poderá ser um homem igual a si? Ou trata-se de si separado de si? O tema do duplo é, como se vê, um excelente pretexto (e típico de Nabokov, que o retomará em O Olho) para uma narrativa delirante: o leitor perguntar-se-á se está simplesmente a ser enganado; se o narrador se mantém fiel a uma realidade estranha, porventura inverosímil, porém factual; ou se não será no âmago da sua mente conturbada que se encontra a justificação para aquela aparição especular.

É um romance fácil? Não é um romance fácil. As interrupções daquele monólogo que se apresenta como em fase de rascunho, com interrupções, regressões, auto-imprecações, por engraçado que seja, cansa, impede a progressão? Sem dúvida. Mas não deixa de ser curioso observar que alguns dos romances mais interessantes que se escreveram são romances que não progridem. Que se interrogam indefinidamente. E que, nessa auto-interrogação, recuam sobre si.

9º DIA, 9ª PERGUNTA E UMA VIAGEM À INFÂNCIA

9ª pergunta: Qual a série de livros de que mais gosta?

Esta pergunta é ambígua. Que se entende, precisamente, por série de livros? Uma colecção, por exemplo? Uma obra em vários volumes (como Em Busca do Tempo Perdido, como Guerra e Paz?)

Lembro-me de uma série de livros de Júlio Verne. Gostava de uns, gostava menos de outros. Mas essa «série» está enraizada nas memórias da minha infância. Mais tarde, os «Sete» raptaram-me a atenção. Opto por estes.

Série O Clube dos Sete, de Enid Blyton

(E todas as séries de Enid Blyton).

domingo, 10 de outubro de 2010

8º DIA

8ª pergunta:

Que livro menos recomenda?

Então, escolhamos uma resposta imprevisível. Mas honestíssima. Um dos livros que menos recomendo, talvez o que menos tenha recomendado é, contudo, um livro de que gosto muito, de um autor russo, que principiou a escrever em inglês relativamente tarde, o que o não impediu de se transformar num mestre da língua inglesa. O seu poder de síntese é extraordinário; o domínio da alusão e da metáfora devem ser objecto de uma contínua aprendizagem por parte de aspirantes a escritor.

Refiro-me a Lolita, de Vladimir Nabokov.

Por que o não recomendo? Por um par ou por um terceto de razões óbvias. Porque tenho medo que me interpretem mal. Porque vivemos num tempo em que, mesmo na literatura, os tabus são cultivados. Porque é politicamente incorrecto e talvez até eticamente repreensível gostar desta obra. É mesmo? Claro que não. Mas, pelo sim pelo não, e porque as pessoas são muitas vezes patetas, evito recomendá-la.

sábado, 9 de outubro de 2010

ISAIAH BERLIN: «O OURIÇO E A RAPOSA»



Já tive oportunidade de garantir que o termo "preparação" seria, neste caso, um termo excessivo. Mas a verdade é esta: com o objectivo de realizar uma palestra, na Biblioteca, para comemorar o centenário do falecimento de Tolstoi, tenho andado a reler, com um cuidado especial, Guerra e Paz. Ao mesmo tempo, procurando uma rede de informações acerca desse romance e desse autor, voltei a desaguar numa obra de Sir Isaiah Berlin, A Apoteose da Vontade Romântica: uma série de ensaios no seu inglês luminoso, espirituoso, muito vivos e subtis, conduzidos por uma inteligência política aguda e por uma cultura vasta e heterodoxa. Um desses ensaios, bastamente citado, aliás, é «O Ouriço e a Raposa», acerca da visão que Tolstoi tem da História.

O título, que sempre me intrigara, remete para um verso do poeta grego Arquíloco: «A raposa sabe muitas coisas, mas o ouriço sabe uma coisa muito importante.». (Infinitos são os astuciosos recursos da raposa; o ouriço, em contrapartida, não tem senão um único: concentrar-se sobre si, esperando que o inimigo se magoe nos seus espinhos...)
Dando um sentido específico a esta distinção, Isaiah Berlin considera que alguns escritores seriam escritores-raposa e, outros, escritores-ouriço. A ideia é, de facto, curiosa.

Entre os escritores-raposa, ou seja, aqueles que sabem muitas coisas, irrequietos e velozes, os que tendem a dispersar-se em inúmeras personagens e temas, aqueles cujos livros nunca se parecem uns com os outros, aqueles cujos interesses se fracturam irreconciliavelmente, poderíamos referir homens como Montaigne (por causa dos seus maravilhosos ensaios em que, a pretexto de falar unicamente sobre si próprio, se reparte por temas como as mulheres, a educação, a amizade, os livros ou o corpo); ou, por exemplo, Jean-Paul Sartre (que da filosofia ao romance e ao teatro, dedicando-se também à biografia, à auto-biografia e à política, não deixou um só instrumento por tocar). Por outro lado, entre os escritores-ouriço, aqueles que sabemos que, por muito que escrevam, não escrevem senão acerca de uma única verdade, procurando recorrentemente unificar, sob a força de gravidade desta, tudo aquilo em que põem o dedo, estaria Hegel, estaria Ibsen.

É interessante pensarmos nos escritores que prezamos, sob este ponto de vista. Eça de Queirós, diria eu, é um ouriço. Gonçalo M. Tavares, sem dúvida, também. Nuno Ramos é uma raposa. Fernando Pessoa é o rei das raposas.

Alguns, não sei. Sophia? Whitman? Proust? (Berlin considera-o um ouriço, e eu, inseguro, divirjo: embora compreenda a razão...). Julgo que o problema se deve a que podem ser simultaneamente uma ou outra coisa, num ou noutro aspecto ou consoante o critério; ou ser uma coisa, sob a aparência de uma outra.

Seria, segundo o próprio Berlin, o caso de Tolstoi, que, assumindo-se a si próprio como um ouriço, até pela concepção de História que expõe em vários ensaios, no entanto, ao criar, cria como uma raposa. Isso explica, de resto, o carácter fragmentário, intrinsecamente "desunido", de Guerra e Paz. Se se torna praticamente impossível reduzi-lo a uma narrativa linear, é porque é uma visão da guerra enunciada num texto que se funda, de certa forma, numa guerra interna. Gravitamos ao redor de diferentes famílias russas, e cada uma dessa famílias é um universo em expansão e em choque com os demais. Verdades, sentimentos, interesses contraditórios se combatem, a partir de perspectivas múltiplas, que se não fundem nem coincidirão. Fala-se, num mesmo capítulo, se não numa mesma página, em russo, em francês ou em alemão; passa-se do fervor religioso para uma euforia da liberdade; da paixão para a melancolia.

A alma russa apresenta-se, ali, em todas as suas cintilações e possibilidades, mas com um grau de intensidade que, como afirma Rogério Casanova, é sempre extremo: tanto na alegria como na dor, tanto no amor como no ciúme. É o texto de uma raposa, claro.

7º DIA: ACERCA DE PROUST E NÃO SÓ

E eis-nos chegados ao 7º dia de um desafio que me pareceu estranho e curioso. Se uma lista é sempre uma série de reduções (tenho consciência de que, por cada livro escolhido em cada um dos dez dias, há centenas de possíveis outros que elimino), não deixa de ser também verdade que cada escolha tem, subjacente, uma história ou uma razão (que resumo); e que, no conjunto, os dez livros formarão uma Gestalt, uma forma própria, um conjunto que me revela: é, sob o modo de uma minúscula biblioteca de livros que se complementam ou repelem, uma expressão do que eu próprio sou como leitor.

7ª pergunta: Que livro mais recomenda?

Não posso responder intemporalmente. Em diversas fases da minha vida, em diferentes momentos de descoberta e paixão, recomendei, obviamente, diferentes livros.
Porém, se quiser assentar sobre o livro que mais recomendei nos últimos meses, a resposta será:

Proust era um Neurocientista, de Jonah Lehrer.

Apesar do título, Lehrer não fala unicamente acerca de Proust. Fala de Withman (atenção, Beatrix!), de Virginia Woolf e de muitos outros criadores (na poesia, na música, na pintura, na culinária até) do ponto de vista daquilo que, na obra de cada um deles, era, artisticamente, se assim podemos dizer, uma antevisão de algum conhecimento que a "neurociência" mais tarde confirmaria.

Recomendei, emprestei, indiquei.

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

PRÉMIO NOBEL 2010


Não vejo mal algum em que o Prémio Nobel seja, frequentemente, uma mera eleição política. Até certo ponto, compreendo e aceito que há áreas onde o reconhecimento que um tal prémio confere se torne o objectivo a ter em conta, condicionando a escolha, de maneira que esta possa vir a ser usada como manifesto, forma de consciencialização ou de pressão. Poderia o Prémio Nobel da Paz, por exemplo, deixar de ser um modo de intervenção política? Podia a sua escolha ser inocente? Não haver sido planeada com o intuito de dar força a um projecto, ou de obrigar um regime a mudar (pense-se nos prémios recebidos por Arafat, Peres, Rabin, Ramos Horta, Obama ou Liu Xiaobo)?

No caso da literatura, é claro, a politização do prémio torna-o ambíguo e, em última análise, irrelevante. Não porque a literatura não seja política. Mas porque o é num outro sentido: não como refém das urgências do tempo, dos interesses e maquinações de grupos, da defesa de minorias ou do ataque aos regimes corruptos. Porque, enquanto subordinada, em primeiro lugar, a uma visão política, a literatura diminui, desvirtua-se, abrevia-se. Reduz-se: a um texto de propaganda, a um instrumento pedagógico e didáctico, a uma condicionadora de mentalidades.

Temo que, em diversas momentos, o Prémio Nobel de Literatura funcionasse como uma chamada de atenção, valesse como uma negociação para impor o autor que melhor representaria um ideal ou uma virtude. E, por isso, não tenho dúvidas de que se escolheram escritores menores, escritores menoríssimos, considerados , todavia, a voz «necessária» do Zeitgeist.

Em nome dessa perspectiva politicamente correcta, Jorge Luís Borges nunca foi agraciado, nem poderia tê-lo sido. E quem se atreveria, por exemplo, a propor um homem como Ferdinand Céline, raivoso anti-semita, repugnante colaboracionista e também - já agora -, um dos maiores escritores da língua francesa?

Postos estes dois exemplos, várias vezes a atribuição do prémio me surpreendeu. Sucedeu quando calhou a vez a Saul Bellow - homem não especialmente de esquerda, bem pelo contrário. Ou a V. S. Naipaul, que dificilmente se quadraria nos critérios estreitos e estritamente ideológicos a que o Nobel nos habituara. Ou, como agora, em 2010, a Vargas Llosa, odiado por todas as esquerdas pelas suas opiniões, pelos seus artigos, pelas suas cumplicidades, pelos seus desprezos.

Gosto muito dos livros de Vargas Llosa. A Cidade e os Cães, que talvez venha em breve a comentar, é certamente o meu preferido. Posso dizê-lo. Di-lo-ei sem ter de me sentir minimamente comprometido com as posições políticas de Mário Vargas Llosa.

E, portanto, congratulo-me com este prémio que, do ponto de vista literário, é muitíssimo justo.
E congratulo-me pelo facto de o Nobel - independentemente de escolher quem pessoalmente me agrada, ou não -, ser capaz, ainda, de uma escolha que me desorienta: que desmente e se não cinge aos critérios pobres de que o acusava.