segunda-feira, 1 de novembro de 2010

GONÇALO M. TAVARES: UMA VIAGEM À ÍNDIA


A linguagem é, para já, um mero instrumento. Aprendemos a utilizá-la para nomear os objectos ausentes, para os descrever, para narrar o que aconteceu outrora, ou o que poderá acontecer. (Ou, redundantemente, o que está a acontecer...)

Mas é possível cairmos no interior da linguagem. Absorvidos por ela, como por um profundo buraco negro, descobrimos, no seu interior, a possibilidade de se criar um mundo que só a ela própria pertence, e que pouco tem que ver com o mundo que ficou lá fora. (Claro, também eu duvido que no interior de um buraco negro se possa criar seja o que for. É, sem dúvida, uma analogia claudicante...). Não só a linguagem, nesse momento, deixa de «representar» o exterior, como nem sequer o tem como vaga referência. Tal como a música, a que podemos acrescentar uma «letra», mas tem, no entanto, um sentido próprio, independente dessa letra e do que as palavras lhe sobreponham, também a linguagem é capaz de criar música, pôr-se face a face consigo, testar os seus limites, subvertê-los. Descobrir um sentido, uma plenitude, em si e a partir de si. E, na minha experiência quase autodidáctica da questão, isto é a poesia.

Uma Viagem à Índia apresenta-se como sendo um poema. Não tenho dúvida de que é, antes de mais, um romance. A história de uma personagem - Bloom - que demanda a Índia, em busca de uma mulher e de sabedoria. Poderia ser um romance que se quisesse assumir, num gesto irónico e paródico, nas formas da poesia. Mas tratar-se-á disso? Ou de outra coisa, um poema, efectivamente, uma experiência de criação a partir do Verbo, à imagem do Génesis, Canto, Revelação?

A resposta a essa pergunta principia no momento em que nos apercebemos de que o texto em causa não poderia ter sido escrito de outro modo. Com palavras diferentes das que são usadas. Que história ali fica, se a despojamos da linguagem em que ela se oferece? Poderíamos transpô-la para outro registo, para outro tipo de discurso, resumi-la, abreviá-la? «Tendo a Índia como derradeiro objectivo, Bloom encontra-se com três homens, um pai e seus dois filhos, que o querem assaltar...». Não é possível, perde-se o essencial: não há nada para contar fora das palavras com que Gonçalo M. Tavares reinventa Bloom, e vai inventando as peripécias de que se faz a sua viagem impossível. Tudo, ali, é literário: Lisboa, Londres ou Paris, sobretudo a Paris que vemos aparecer diante de nós, não são as cidades geograficamente reais, mas um concentrado de sonho e mito: «Ah! Paris! Em nenhuma cidade se está mais perto de Paris que em Paris. Daí a sua grandeza.»

Em um sentido muito similar àquele em que Walter Pater proclamava que toda a Arte aspira à condição de música, poderíamos dizer que, desde o início, toda a obra de Gonçalo M. Tavares aspira à condição de poesia. São já poemas os seus romances, em que tudo se transformaria se mudasse de habitat, quer dizer, se fosse arrancado à sua forma de exprimir, ao modo como a história é contada. Se o desligássemos do acto linguístico de contar. A linguagem nunca é pretexto: porventura, a matéria sim, essa será pretexto para o exercício da linguagem.

Obviamente, Uma Viagem à Índia é um texto que não deixa pedra sobre pedra. Trata-se de sabotar todos os lugares e livros e categorias que nos habituámos a frequentar tranquila e rotineiramente, instaurando-se um maravilhoso universo paralelo, atemporal, meta-literário, onde improváveis sequências de sentido nos surpreendem continuamente. É uma odisseia. Mas uma odisseia totalmente humana: porque, e isso nos é lembrado e repetido, a aventura narrada não diz respeito aos deuses; o mundo dos deuses fica longe e longe deve permanecer. Aqui, fala-se do que ocorre ao nível do olhar humano. O próprio Destino não é senão uma paródia. Falar-se-á em profecia ou em adivinhação, mas, em última análise, nada há para se revelar; o misticismo é um logro; o sonho da Índia acabou sendo esvaziado pelo Ocidente.

Numa entrevista concedida ao JL, Gonçalo M. Tavares explicava que, quando se é dextro, é preciso tentar escrever com a mão esquerda, ou seja, recusar o que se aprendeu a fazer demasiado habilmente. É preciso experimentar o que se não experimentou. Bem ou mal, só isso vale a pena. Por isso, Uma Viagem à Índia é tudo o que não esperávamos e, onde quer que o esperássemos, se recusa a comparecer. Romance e poesia, mito e filosofia, revisitação e despedida, reconhecimento e exploração de desconhecidos percursos no meio dos que julgávamos conhecer, habilidade e desconstrução de toda a habilidade em que assentáramos, aventura e desventura, é uma obra daquelas que se percebe que algo marcam, algo apontam, algo trazem. Se não a Índia, a impossibilidade da Índia. Se não o que a Índia é, talvez a ideia do que já não pode ser.

1 comentário:

Zé alberto disse...

Muito apreciei este seu texto, José; fico deveras curioso pelo livro do Gonçalo M. Tavares. Pesquisarei numa livraria,...a flecha da curiosidade atingiu-me, certeira.

Obrigado pela sua atenção para com o esclarecimento que lhe solicitei!

abraço!