quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

ÀS MINHAS SEGUIDORAS

Às minhas 3 seguidoras, curiosamente brasileiras todas elas, e que não conheço - mas cujos blogues tenho espreitado -, Florzinha Afável, Stella e Fernanda Lym, um obrigado muito sentido.

Se um dia quiserem comentar, por favor, não hesitem.

Mas, ainda que o não façam, todo tremo de euforia contida só de pensar que, no longínquo Brasil, três florzinhas afáveis se interessam pelo que quer que eu escreva acerca dos livros que amo.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

HOMENAGEM PÓSTUMA A PROPÓSITO DE UMA HOMENAGEM ANTE-PÓSTUMA

J. D. Salinger faleceu, julgo que na passada 4ª-feira.
No domingo anterior dedicara-me a invadir o meu irmão, lendo-lhe precisamente passagens de The Catcher in the Rye, que tinha acabado de comprar, ou re-comprar, muito pouco tempo antes.

Pela mesma altura, sensivelmente, escrevera um post sobre esse autor e esse livro que considero de uma sensibilidade ímpar.

Fico feliz por ter comprado o livro e escrito o "post" antes da morte de Salinger. Sem a prever. Não fiz parte daqueles que se lembram de um autor quando e porque este morreu.

Há coincidências espantosas. Que, pois, esse meu interesse espontâneo, gratuito, que essa memória que não foi senão a saudade da personagem (e narrador), que esse meu regresso à obra, que me surgiram do nada, a propósito de coisa nenhuma, sejam a minha homenagem
a J. D. Salinger.
Até sempre.

sábado, 23 de janeiro de 2010

J. D. SALINGER: THE CATCHER IN THE RYE


Escrevo o texto, propositadamente, numa espécie de deserto cortado por uma ilustração única e diminuta. O homem que nos sorri dessa fotografia antiga é J. D. Salinger, o qual, desde a publicação e quase imediato sucesso da sua obra-prima, preferiu manter-se num estado prático de reclusão. Para quê, pois, expor, mais do que o estritamente necessário, um autor que recusa a exposição?

Terei de falar novamente do meu primo? Claro que sim. Como este estudava, então, algures em Inglaterra, conhecia bem um livro de leitura obrigatória para a aprendizagem da língua inglesa: The Catcher in the Rye. Apresentou-mo, portanto.

Comecei por lê-lo em inglês. Percebi, desde as primeiras páginas, que aquele romance escrito nos anos cinquenta permanecia actual; mais: de uma novidade e uma originalidade absolutas. Mais tarde, comprei-o em português; hélàs!, emprestei-o; perdi-o de vista. Ontem, comprei-o de novo, numa tradução que lhe oferece o nome suspeito e pouco feliz de À Espera no Centeio.

A forma revela-se um achado: o narrador é Holden Caulfield, um adolescente de dezasseis anos. E que, de facto, escreve como um adolescente de dezasseis anos. A linguagem rebelde e aparentemente pouco sofisticada de Caulfield, sustentada nos pilares que são as palavras obscenas e violentas do léxico adolescente em qualquer tempo e em toda a parte, vai-se mostrando o meio perfeito para a apresentação da sua perspectiva - que é, naturalmente, a perspectiva de, que esperavam?, um adolescente de dezasseis anos. Do seu ponto de vista, os velhos são deprimentes, os adultos são em geral pessoas entediantes, as exigências e expectativas, de que o cercam, completamente falhas de sentido.

Este distanciamento em relação ao mundo que descreve, no entanto, minuciosamente, assume-se como um veio poderoso de humor. Reconheço, aliás, aquele humor ácido. Tenho um filho de catorze anos e, acreditem, os adolescentes olham hoje para as coisas com a mesma incompreensão irónica que há cinquenta anos.

É, num certo sentido, um livro que nos resgata: embora Caulfield seja, para nós, o «estrangeiro», isto é, o objecto estranho que vai lidando com os seus dias através de decisões erradas e perigosas, a sua tentativa de comunicar connosco, leitores, aproxima-o, faz-nos entrar em si, fá-lo entrar em nós. Nasce uma telepatia. Como se, dentro de cada um de nós, um adolescente que nunca morreu despertasse e estabelecesse o contacto: sim, Caulfield, compreendo-te bem, o sistema é tramado, as opções que se te abrem são todas igualmente más, mais vale seguir essa espécie de instinto louco, duro, aventureiro e generoso.

Mas mais do que isto, como é evidente, Caulfield, sob o azedume do seu riso, sob a ironia tensa, a pura propensão para o disparate (mais, até, do que para a revolta), torna-se uma figura comovente. Veja-se o diálogo com a irmã, um momento que se crava com toda a força numa zona vulnerável do peito do leitor.

Não me importo de emprestar este livro a outra pessoa, porque Salinger merece que o conheçam.
De resto, é claro, eu iria comprar imediatamente um novo exemplar.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

INJUSTIÇAS

Temo ter sido injusto, no post em que procurava lembrar e referir os marcos do meu passado como aprendiz de leitor.
Então, e sobre Júlio Verne, nem uma palavra? Pois havia uma colecção bem bonita, com livros de capas apetitosas, coloridas: sei que me ofereceram, em certo aniversário, Atribulações de um Chinês na China, que li com algum entusiasmo. Sei que havia, na minha cabeceira, A Volta ao Mundo em 80 Dias.

Então, e sobre Mark Twain, nada a dizer?
Como é possível?

Talvez ainda antes de Os cinco e de Os Sete, Tom Sawyer foi o livro que me conquistou: tratava-se de um rapaz hiperactivo. (Sabia eu lá na altura o que era isso! Aliás: o próprio Mark Twain não fazia ideia, na época em que escreveu simplesmente sobre um puto irrequieto e aventureiro, que possibilidades diagnósticas reservaria o futuro). Esse garoto dotado de uma imaginação inesgotável, que o mundo dos adultos não era capaz de digerir, agarrou-me, prendeu-me, levou-me consigo.

Depois li Huckleberry Finn; apreciei-o também devidamente, mas não como a Tom Sawyer, ah, não, nada como Tom Sawyer - e a sua temível tia Polly; o irmão perfeito, invejoso e delator (até porque eu tinha um irmão perfeito, invejoso e delator); a Becky, por quem nos apaixonámos os dois ao mesmo tempo, Tom e eu; o Huck; o preto Jim. E, claro, o malvado Injun Joe!

Recordo as cenas como se as relesse, Deus do céu!, desde aquela encenação que Tom faz, logo num dos capítulos iniciais, para persuadir os seus amigos de que tarefa que a tia o obrigara a desempenhar era, na verdade, um prazer - o que teve como resultado que lhe pagassem (em berlindes ou ratos mortos atados por um fio) para a realizar em vez dele -, passando pela sua inesquecível e malograda tentativa de suicídio por amor, até aquela outra, já no fim, que nos oferece o dramático confronto com Injun Joe, que tantos pesadelos me provocou...

Tom Sawyer e Huckleberry Finn são livros, perdoem-me a expressão detestável, infanto-juvenis como se não fazem já. Maduros, interessantes, profundos - sem cedências. Uma porta aberta para o gosto de ler.
Esqueci-os?
Imperdoável.

sábado, 16 de janeiro de 2010

ROBERTO BOLAÑO: 2666



Já há muito não subo a este blogue. Hesito na palavra passe, sinal mais do que evidente de que não tenho recorrido frequentemente a ela.

Não sei bem sobre que falar. Mas, afinal, sei. Isto é, de miríades de possibilidades que respiro (e se me referisse a Camus, de que se comemoram cinquenta anos da morte?, e se me referisse a John Fante, escritor semi-maldito que acabei de descobrir?, por que não a um português, digamos Nuno Morais, poeta malogrado por cuja poesia me apaixonei?), há já uma possibilidade mais forte do que as outras, que se define e torna nítida. No momento em que teclo estas palavras, já ela se esclareceu e tornou real. Bolaño. 2666. É isto.

De Roberto Bolaño, autor chileno, conhecia, quase por acaso, um livro chamado Os Detectives Selvagens. Se quisesse reduzir 506 páginas a dois adjectivos, escolheria estes: originalíssimo e desigual.

A linguagem é extraordinária; a narração principia e, durante muito tempo, mantém-se numa crueza hilariante; as personagens multiplicam-se na sua riqueza e autenticidade. Mas o problema é, em parte, precisamente esse: demasiadas personagens, implicando universos diversificados, num labirinto em que nos perdemos, sem dúvida interessante mas, é verdade, nem sempre igualmente
interessante. O entusiasmo do leitor vai-se esbatendo: cede a vez ao cansaço e à confusão.

O livro de que vos quero falar, todavia, é outro. 2666 tem uma história subjacente: avisado da proximidade da morte, Roberto Bolaño decidiu escrever um longo romance, de forma a que a sua família pudesse ficar amparada. Dividiu o gigantesco texto em cinco partes; transformou-o, portanto, em cinco romances, que pediu ao seu editor que publicasse em separado. Assim, durante pelo menos cinco anos, a mulher e os filhos poderiam sobreviver à custa dos direitos autorais...
Foi, porém, o próprio editor, homem inteligente, sensível, desrespeitador e de bom gosto, que percebeu que esta obra enorme não podia, sem prejuízo, ser espartilhada. Talvez mais tarde - mas numa primeira fase, tornava-se absolutamente imprescindível que o leitor tivesse aceso à sua unidade intrínseca.

2666, de 1025 páginas, é, portanto, o género de obra que costumamos referir como um «romance falhado», não querendo com isso propriamente menosprezá-la, mas tão-só caracterizá-la enquanto tentativa impossível de abarcar a totalidade. Musil, com O Homem sem Qualidades, e talvez também Proust, escrevendo Em Busca do Tempo Perdido (sem que em qualquer caso se trate de diminuir a grandeza ou o génio criativo que revelam), seriam autores de similares esforços para dar conta de todos os pormenores, todos os sujeitos, todo o passado, todo o presente e todo o futuro, num sistema universal e particular, aberto e fechado, um texto inconclusivo mas concluído.

Deparamos, em 2666, com a mesma diferença de universos («registos», como agora se diz) que em Os Detectives Selvagens: mas existe aqui, de algum modo, uma tensão equilibrada. Cinco partes que se lêem como romances diferentes, mesmo que a princípio a unidade ou o fio condutor que os liga pareçam ténues, conseguem encaixar-se, a prazo, como as peças de um gigantesco puzzle onde não temos, nem esperamos ter, senão no fim, uma visão de conjunto. A dispersão perturba menos, é quase uma condição organizadora de um todo que tende fatalmente a dispersar-se nas suas partes.

A narração de Bolaño é brilhante. O sarcasmo está sempre presente, como uma faca de ponta-e-mola; a noção do ridículo é uma constante que, todavia, nem por um momento faz com que nos distanciemos das personagens, ou deixemos de sentir fundamente a sua tristeza. O enigma que, de certo modo, se transforma em diferentes enigmas - onde está Archimboldi, quem comete a série de violações, quem comete a série de sacrilégios, e que terão estas interrogações que ver umas com as outras - permanece sempre audível e interessante, motor surdo de um suspense que subsiste às variações de ritmo.

Meu primo - de quem tanto aqui tenho falado, e de quem falarei porventura ainda mais, agora que sei que, lá da longínqua América, se foi tornando um leitor atento deste blogue - recebeu, no Natal, um exemplar deste livro. Iniciou-o: «Tem graça», afirma. Mas torce ainda demasiado o nariz. Há aspectos que lhe parecem forçados, como um experimentalismo bacoco em prol da originalidade pela originalidade.

Não digo que não leia, aqui ou ali, algo que pode ser atribuído a uma certa pose intelectual, a um certo brilho desnecessário, a uma originalidade vã. O que digo é que nada disto, nada, retira à progressão e à grandeza da obra, à sua ambição totalitária e ao pormenor da sua multiplicação por ângulos diferentes, às personagens, às situações, à comédia, à tragédia e ao mistério, uma grama que seja de sentido e força.

Não se pode fechar o sistema. Qualquer tentação e tentativa de o fazer não pode senão concluir-se num falso fim e num falhanço. Nevertheless, há falhanços magníficos. É o caso.

sábado, 2 de janeiro de 2010

COMO SE FORMOU UM PROFISSIONAL DA LEITURA



Não me lembro, numa primeira infância, senão dos livros muito coloridos de Noddy e de uma excitante edição de O Sítio do Pica-pau amarelo. Estava em Moçambique, na casa do meu tio e, lá em baixo, para onde eu gostava de me escapar sozinho, penetrava na gruta mágica de Ali-Baba, que era a salinha de brinquedos que o tio António mandara fazer às netas, a partir de um antigo galinheiro: perdia-me entre brinquedos e livros.

Mais tarde, com oito ou nove anos, já em Lisboa, recordo um volume magnífico - talvez no português do Brasil -, que reunia Robin Hood, Alice no País das Maravilhas e Alice do Outro Lado do Espelho, do qual retenho perfeitamente o poema da Morsa e do Carpinteiro, que devo ter relido vezes sem conta, surpreendido, divertido, fascinado.

A seguir, de volta a Moçambique, para além das leituras proibidas que pescava secretamente entre as estantes do meu irmão - O Homem, sobre um primeiro presidente negro dos Estados Unidos, que agora faria sentido reler, e A 25ª Hora -, o que marcou decisivamente o meu gosto pela leitura foi a descoberta da senhora dona Enid Blyton: Os Cinco, é claro, mas, mais do que esses, Os Sete: o clube que formavam, as excursões em bicicleta e os deliciosos «lanches ajantarados» que as mães lhes preparavam, ou as merendas, descritas com todo o detalhe, que levavam nas viagens. Devorei Os Sete. (Hoje, nem me lembro senão de um ou dois deles, um tal Pedro e uma tal Bárbara. E um cão, que era o Toy!)

Com alguma curiosidade, pergunto-me qual foi o primeiro livro literariamente excelente que li, aquele que terá marcado o despertar do meu gosto, o meu prazer, o meu vício, a minha paixão pela leitura. Estou em crer que pudesse ser O Idiota. (Sempre era Dostoievski!). Estava na mítica estante do meu irmão, e este detestava-o, com aquela sua arrogante necessidade de pôr em causa tudo quanto fosse consagrado e respeitado. «Génios tão indiscutíveis», reclamava ele, sarcástico, «e repara como logo da primeira para a segunda página entram em contradição». Era verdade. Não me lembro de que contradição se tratava, algum pormenor na descrição do vestuário, mas lá estava, aliás assinalado pelo tradutor.

Mas talvez não tivesse sido esse o meu clique. Talvez uma peça de teatro do Arthur Miller, talvez um livro de contos de O. Henry, talvez o Gorki. Talvez mesmo Nietzsche, de que não percebia uma palavra e que no entanto me mantinha cativo, absorvendo parágrafos completos. (Assim Falava Zaratustra, já perceberam...).

Em todo o caso, foi assim que a minha formação se foi tecendo. Darwinisticamente. Entre tropeções bem-sucedidos, acidentes e erros que pegaram, descobertas imprevisíveis, lixo que ficou pelo caminho, deslumbramentos precoces e revelações tardias.

Atrevo-me a achar que o resultado é interessante.

segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

ANTONIO TABUCCHI: O JOGO DO REVERSO




Ponhamos de parte a infindável quantidade de livros que recebi pelo Natal, a que me dedicarei mais vagarosamente e de que aqui irei dando conta, para nos fixarmos num discreto O Jogo do Reverso, emprestado pela Biblioteca vizinha.

Antonio Tabucchi importa-me por variadíssimas razões: em primeiro lugar porque este escritor italiano, porventura através da sua paixão por Fernando pessoa & heterónimos, se tornou um estudioso atento e subtil da poesia portuguesa, um cultor fascinado e fascinante da própria língua portuguesa e, já agora, alguém que penetrou delicada e deliciadamente no espírito português, feito da saudade, é claro, (que «não é uma palavra, é uma categoria do espírito, só os portugueses conseguem senti-la, porque têm esta palavra para dizer que a têm»), mas também de atmosferas, como a proporcionada por um dédalo lisboeta de ruas antigas, com nomes maravilhosos, por exemplo a dos "douradores" ou a dos "correeiros"; pensões, tasquinhas e uma culinária de comidas muitas vezes «delicadas» mas «de aspecto repelente», culinária essa cuja história os próprios portugueses em geral desconhecem (sabia lá eu, por exemplo, que o arroz de cabidela fosse um prato herdado dos judeus sefarditas, que não torciam o pescoço à galinha, antes o cortavam, aproveitando-lhe o sangue...); e, em suma, de grandezas e mesquinhices confusa e surpreendentemente entrelaçadas...

O Jogo do Reverso, um pequeno livro de contos, é invulgar por tudo isto: ser da autoria de um italiano com
uma compreensão de quem somos e do que somos que nos redime e nos faz sentir tristes e orgulhosos por sermos quem somos e o que somos; uma escrita de extrema elegância, subtil no molho, com prazeres quase secretos, que só numa segunda ou terceira provas se deixam gozar; e, mais do que isto, uma boa ideia, tecnicamente muito bem realizada: a de histórias em que o que interessa é o reverso, o que mal se expõe, mas a partir de onde se encontra o verdadeiro centro de leitura - como na pintura Las Meninas, de Velásquez, em que o que interessa não é o que nós vemos, mas sim a perspectiva do pintor, perspectiva de que não temos senão indícios, literalmente: reflexos.


No caso concreto deste livro, ou desta edição da Quetzal, não é um pormenor despiciendo o prefácio, da autoria de José Cardoso Pires, um Cardoso Pires completamente entregue à sua qualidade de leitor de Tabucchi, a sua escrita, a sua busca de um reverso, como no jogo que, de certa forma, afiança-nos, todo o romance é.

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

CORTÁZAR DE NOVO: O REENCONTRO


O mundo está repleto de misteriosas coincidências. Misteriosas e maravilhosas.
Não tinha acabado há muito de postar   o texto anterior, sobre Julio Cortázar, quando uma colega me disse, já não sei em que situação, que revira um filme de Antonioni, "Blow-up", baseado, vejam bem, num conto de Cortázar - coisa que eu ignorava.

Ainda essa informação não fora completamente processada quando, numa livraria, deparo com uma lindíssima edição, em português, de A Volta ao Dia em 80 Mundos. Uma capa suculenta, amarela.
Folheei, Compro, não compro, compro, não compro?, completamente rendido aos títulos dos capítulos, aos desenhos que ia descobrindo nas páginas, às fotografias que o ilustram. Em resumo: comprei.

E nessa noite, em casa, comecei a ler, já então meio doido e obsessivo, mas entremeando-o com o conto Blow-up (de As Armas Secretas) e os contos de Todos os Fogos o Fogo, que trouxera, entretanto, da biblioteca vizinha. Estou, portanto, literalmente inundado de Cortázares e, de certa forma, já não sou eu, sou já o próprio Cortázar, aspirando e expirando a sua escrita, cardíaco ao ritmo do seu suspense, dos seus meios sofisticados de construção, ocultos mas eficazes, do seu imaginário ilimitado, dos ardis com que me arrasta para, inesperadamente, me quebrar os rins, me deixar cair desamparado de alturas imensas.

A Volta ao Dia em 80 Mundos está para além de qualquer qualificação. Não nos detenhamos numa. Diria que, datando de 1967, este livro prenuncia genialmente o espírito do blogue - é, no conceito, aquilo de que só os melhores blogues se aproximariam, tantos anos depois: delirando entre a poesia, a reflexão mais ou menos sucinta sobre os objectos literários ou musicais da preferência do autor, procurando uma escrita que seja, para o leitor, o mesmo que o jazz para um ouvinte, sem qualquer regra pré-definida, improvisando-se a si mesma numa espécie de contínua luta consigo mesma; deslizando, quando menos se espera, para a memória, o conto, a homenagem, profusamente ilustrada, esta obra torna-se um impressionante exercício de abertura e experimentação, erudição e loucura.

Compreendo perfeitamente a metáfora do jazz a propósito destes textos: «Tudo o que segue», explica-nos Cortázar, «participa o mais possível (nem sempre se pode abandonar uma carapaça quotidiana de cinquenta anos) dessa respiração da esponja em que continuamente entram e saem peixes da memória, alianças fulminantes de tempos e estado e matérias que a seriedade, essa senhora demasiadamente tida em conta, consideraria inconciliáveis». E é um pouco nessa euforia jazzística da esponja que a linguagem de Cortázar se vai tecendo, e experimentando, sempre à beira de um qualquer precipício, em curvas impossíveis, mas que ansiamos por fruir maximamente, toda feita de «alianças fulminantes» e «tempos e estados e matérias» aparentemente «inconciliáveis».

Há linguagens que nos abrem o espírito, que nos atacam e não nos deixam repousar. A de Cortázar amplia-nos como poucas. Não, "amplia" não, porque não se trata de nos aumentar a informação, mas de nos forçar a ler e a pensar diferentemente, a abrir túneis novos, provocando-nos surpreendentes sinapses. Como poucas, dizia. A este nível e desta forma, pouquíssimas: a de Proust, sem dúvida e, entre nós, a de Fernando Pessoa, a de Herberto Hélder, a de Gonçalo M. Tavares muitas vezes, a de José Luís Peixoto, quando no seu melhor. Percebemos até que ponto, nesse movimento livre e libertador, pensar longe de todos os hábitos e mecânicas simplificadoras, pensar entrando em continentes até então inexplorados, não pode ser feito senão através de uma fala que, em todos os pormenores, se vai renovando, também, e desintegrando, e permanentemente refazendo em fantásticas figuras...

Não estou seguramente no mesmo ponto de mim em que me encontrava antes de haver iniciado a leitura de A Volta ao Dia em 80 Mundos.

sábado, 19 de dezembro de 2009

JULIO CORTÁZAR: RAYUELA




Se acaso há uma lógica, uma forma normal de agirmos quando se trata do gosto pela leitura - e eu penso que não há -, essa seria, aparentemente, a de procurarmos tudo quanto exista de um autor que nos agradou.

Assim aconteceu comigo em relação a Eça de Queirós. Julgo não exagerar ao dizer que um dia infeliz na minha vida foi, certamente, aquele em que percebi que o tinha lido de fio a pavio: dali em diante, como estava morto e não consta que tivesse alguma arca capaz de ainda nos vir a surpreender, poderia sempre relê-lo, sem dúvida, mas nunca mais teria nas mãos um livro seu, para mim virgem, todo a descobrir...

Com Júlio Cortázar, porém, o que sucedeu foi diferente. E estranho.

Conheço deste escritor um romance, e pronto! O genial Rayuela, traduzido em português por O Jogo do Mundo.
É gigantesco - uma daquelas obras que pretendem abocanhar o mundo inteiro, em todos os seus estados e qualidades. Mas trata-se, sobretudo, de um "jogo" e, enquanto tal, um prodígio de inventividade, logo a partir do pormenor conhecido de que o leitor não tem de iniciar a leitura pelo primeiro capítulo: na verdade, pode começar por onde quiser, constituindo um percurso quase pessoal, ao qual poderá opor, noutra altura, um percurso alternativo.

E este constituir de uma lógica própria no interior de um livro que possibilita, portanto, infinidades de lógicas e de caminhos, faz com que, em rigor, haja, sob a enganadora estabilidade deste romance, uma multiplicidade de romances, de que somos co-autores.

Mas, repito, isto é um pormenor. Em última análise, um capricho de autor. Mas lendo-o, sentimo-nos mergulhar num mundo de personagens inesquecíveis na sua estranheza, na sua energia descontrolada, nos seus comportamentos despudorados. Ergue-se à nossa volta um mundo - vários universos paralelos, portanto - onde a pobreza boémia tem um papel importante, e o amor desesperado, e a observação contundente do ser humano. Há uma vida quase marginal numa mansarda infecta, com vizinhos difíceis; há um concerto inesquecível; há gravidezes desamparadas...

É um livro vagaroso. Vamos desbravando terreno, relendo o que já lêramos, para rir melhor, encantados, e experimentando possibilidades: «E se, de facto, eu saltar agora quatro capítulos, que virei a recuperar a seguir? Que sentido encontrarei?»

É, ao mesmo tempo, uma experiência esgotante, como o são as paixões. Todas elas.
Largamos esta obra tão preenchidos, tão profundamente tocados pela arte de Cortázar, que, depois, tendemos a evitar o reencontro.
Comigo, assim foi. Não tenho procurado Cortázar - e não conheço dele nenhuma outra coisa, nem os seus ensaios, nem as crónicas, nem os contos. Nem tornei a pegar em Rayuela.

Porquê? Porque tenho medo de uma decepção? Porque temo não reencontrar o prazer e o gozo intensos? Porque me senti devorado, esventrado, sem forças, com a leitura impossível e infinita? Porque, simplesmente, este medo não é senão um mito de leitor, que criei? Por tudo isto? Por um pouco de tudo isto? Sabê-lo!

Qualquer dia, atrever-me-ei a procurar um conto de Julio Cortázar...

sábado, 5 de dezembro de 2009

MÉTODO PARA ENCONTRAR, EM CADA CASO, A CHAVE DO POEMA

Muitas vezes, poemas que chegam aos meus olhos já com uma História e uma tradição que os consagraram como sendo obras maiores parecem-me, contudo, opacos: leio-os, e não entro em êxtase; não só não se dá uma revelação, como nem sequer aquilo que, segundo Borges, é a condição de toda a grandeza artística, «uma iminência de revelação que não acontece». A vizinhança de uma epifania. Mas nem isso. Permanecem conjuntos de versos que me soam como insignificantes, que me não despertam, que não encontram caminho directo algum para a alma.

Descontemos a possibilidade de que eu possa não considerar nada de extraordinário o que encantou os outros homens, em alguns casos desde há séculos. Porque isso poderia ser uma explicação num caso ou noutro, mas, comungando todos nós da mesma humanidade, de uma cultura que nos aproxima, de referências comuns, não creio que seja a norma.

E, portanto, o que faço é procurar continuamente as chaves para essa descoberta da revelação ou da «iminência de uma revelação que não chega a acontecer».

Aceito, portanto, que, pelo menos para mim, a revelação poética não seja directa nem imediata. Falta-me, quem sabe, esse tipo de «ouvido musical» para a poesia. O poema principia por se me apresentar como uma porta fechada. Por alguma razão, o sentido sob o sentido, a luz brilhante sob as palavras, a música e a «visão» precisam de ser escavadas - inicialmente, estão-me ocultas.

O meu método consiste no cumprimento de alguns pontos simples.

1. Leio o poema em voz alta. Borges - uma vez mais - já tinha afirmado que um poema que não exige ser pronunciado, que não pede para ser "dito", não é, talvez, um poema que valha a pena. A génese de toda a poesia é a música. Não posso limitar-me a ouvi-lo na minha cabeça, ou num percurso quase imediato dos olhos para o espírito, preciso da mediação da voz. Tenho de estar só e sentir-me à vontade para me ouvir a lê-lo.

2. Não o posso ler uma única vez. Tenho de repetir, detendo-me em particular nas passagens que me chamaram a atenção, que me obrigam a voltar atrás. É uma busca de chave. Essa chave é, por vezes, um verso, um brilho mais intenso que me escapara antes; um fulgor em que tropeço inadvertidamente até que, de súbito, se encha de sentido. Mas, captada essa minúscula luz, captei um ponto de apoio, um ponto de sentido a partir do qual todo o poema se ilumina. E quantos mais pontos de sentido se me descascam, mais claro o todo se me vai tornando.

3. Não sempre, mas, em muitos casos, o conhecimento (a estrita informação) ajuda - não porque a poesia seja prioritariamente da ordem do intelecto (o que implicaria, sem dúvida, aquela dissecação que arruina a apreensão da essência); mas porque, por exemplo no caso de A Terra Devastada (T. S. Eliot), não me foi indiferente compreender que raízes, que referências contém, a que remissões convida, a que ligações obriga, que mundos associa a si, na procura de uma unidade maravilhosa do fragmentário.

4. Quando nada disto me permite entrar, prefiro não insistir. Regressarei ao poema pouco mais tarde, ou muito mais tarde, quando o interesse me tornar a chamar. E sucedeu-me observar que o que não me falou numa certa fase da minha vida, se tornaria, anos depois, um dos poemas da minha vida. Assim, por exemplo, com a Divina Comédia. Assim, mais recentemente, com a redescoberta de Terra Devastada.

JEROME K. JEROME: 3 HOMENS NUM BOTE (SEM MENCIONAR O CÃO)



E quanto a livros de humor que me tenham marcado?

Para além de Eça de Queirós, cuja obra contém humor a jorros - mas possui tão mais para além disso que seria um crime reduzi-la a uma colecção de romances humorísticos - poderia referir Alice, tanto no País das Maravilhas como no Outro Lado do Espelho; poderia referir um clássico português que circula na minha família há várias gerações, o impagável Lisboa em Camisa (tão velhinho, que o emprestei a uma amiga e ela foi imediatamente para o hospital, vítima de um ataque de asma) e, last but not the least, um certo romance, comparativamente muito mais recente: Três Homens num Bote (Sem Falar no Cão), de Jerome K. Jerome.

Três Homens foi-me apresentado pelo meu tio; segundo ele mesmo me disse, lia-o na cama quando adoecia e tinha de faltar à escola; absorvia-o com enormes gargalhadas: em face disso, a tia Joaquina vinha saber por que piorara a tosse.

Aprecio particularmente, no livro, aquela astuciosa ingenuidade que também encontramos no Conde de Abranhos: conta-se com a maior das seriedades, como se se tratasse de elogiar um comportamento corajoso ou definido por algum tipo de virtude, o que o leitor percebe que se trata de idiotice, ou cobardia, ou mesquinhês.

As situações, quase surrealistas, descambando facilmente no nonsense, nunca são senão a radicalização daquilo que é perfeitamente possível e com que nos identificamos: todos nós já tivemos a experiência de montar uma tenda, por exemplo, e sabemos que se trata fatalmente do esforço estóico de nos enrolarmos em cordames, tropeçar em espias e ver cair o que parecia seguro, antes de se recomeçar do zero.

É verdade que Jerome K. Jerome tem a pulsão da filosofia: nem sempre se embrenha em meditações sem se tornar fastidioso. Quando quer parecer sério, cansa. Mas os seus hipocondríacos, os seus tios irascíveis ou patetas, o seu pianista trágico, alemão (que uns jovens estudantes convenceram o público que era um músico de cançonetas cómicas), ou, sobretudo, a forma como, narrando a viagem de férias feitas por três amigos (sem falar no cão), rio acima, aproveita, a propósito, para introduzir os mais diversos episódios familiares - ou pretensamente da História de Inglaterra - fazem de Três Homens um livro hilariante. Um livro que não descansei enquanto não redescobri, na feira do livro, há uns anos, para poder passar o testemunho ao meu filho...

domingo, 29 de novembro de 2009

O PRIMEIRO ROMANCE POLICIAL




Savater afirma, não sei bem onde, que - muito antes de Edgar A. Poe - a génese do romance policial se encontra na Bíblia. Refere «Daniel».

Espicaçado por esta ideia, fui reler o profeta Daniel.
E, se não me equivoco, o episódio que alegadamente fundaria a escrita policial é o seguinte:

Joaquim casou com Susana, uma jovem bonita, virtuosa e temente a Deus.
Dois juízes, frequentemente apresentados, ao longo do texto, como anciãos, vêem-na e enamoram-se dela: são homens habituados a usar o seu poder de uma forma abusiva, que lhes permita aceder a tudo pela chantagem.
Não querem confessar um ao outro que têm a intenção de seduzir a moça. Um dia em que sabem que ela vai estar no seu jardim, despedem-se os dois, «Então adeus, adeus, até logo, até logo», como se se preparassem para regressar cada um aos respectivos afazeres. A seguir, fazem meia volta e dirigem-se ao jardim. Como é evidente, encontram-se a meio caminho, perplexos.

Velhas raposas que são, percebem imediatamente ao que vai o outro, e combinam unir esforços para convencer a rapariga a entregar-se-lhes.
Assistem, já ocultos no interior do jardim, à forma como - nem de propósito! - Susana dispensa as suas aias, porque está muito calor e lhe apetece banhar-se.
Elas fecham então o portão e retiram-se, sem perceber que os dois anciãos permanecem no interior do recinto, ao abrigo de árvores que os escondem aos olhares.

Enquanto Susana se banha, aparecem-lhe. Explicam-lhe as suas intenções e as suas condições: ou ela aceita tornar-se amante de ambos, ou a acusarão de ter sido encontrada em amores ilícitos com um jovem.
Susana recusa. Sabe o que a espera, mas, como de facto não pecou, não admite pecar para se defender de um pecado não cometido.
E grita. Grita por socorro, ajuda, protecção.
Imediatamente, os dois anciãos gritam, também, e ainda mais alto. Abrem o portão, chamam por gente, que acorre de todos os lados.

A multidão ouve a versão deles, segundo a qual teriam testemunhado como um jovem estivera fazendo sexo com Susana, sob uma certa árvore e, mal os viu, abrira o portão e fugira, sem que o conseguissem deter.

A populaça crê nesta versão. Arrasta Susana para a morte. Condenam-na, pois, sem julgamento.

Daniel, que, alertado por Deus, tem conhecimento da inocência da rapariga, intervém. Declara-se não culpado- surpreendentemente, como se o houvessem culpado, a ele, de ser o desrespeitador da moça, o que espanta os próprios anciãos -, e garante que porá tudo em pratos limpos.

É o progenitor de Poirot. Um pré-Poirot reunindo os suspeitos no salão e preparando-se para conduzir um hábil inquérito. Todos os ingredientes estão, efectivamente, já presentes nesta génese.

Pede que separem os anciãos. E, a cada um por si, faz a pergunta mais simples que se imagina: Debaixo de que árvore se encontravam os dois amantes?
Cada um por sua vez, e cada um por si, sem ter tido tempo nem condições para rever nem conjugar as versões nos seus pormenores, os juízes respondem divergentemente.
Está exposta a sua mentira.

Espantoso, de facto.

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

PROUST: O MAIOR ESCRITOR DE SEMPRE

Tinha sido convidado para jantar em casa do cunhado de uma amiga minha.

Após a refeição, lauta, sem dúvida, e enquanto alguns dos presentes cercavam uma mesa de snooker, jogando com entusiasmo, fui-me aproximando, com um tímido copo de tinto na mão, da estante que me não saíra da visão periférica desde que ali tinha chegado.

Às tantas, vi uma sombra que, por detrás de mim, se projectava sobre as lombadas de livros que eu estava pesquisando. Era o dono da casa, que, por sua vez, se aproximava. Retirou de uma prateleira um livro, passou-mo para a mão. «Conheces isto?» - Era o primeiro volume, da Europa-América, de Em Busca do Tempo Perdido. (Eu estava maravilhado com o que parecia ser um magnífico e surpreendente encontro de almas gémeas proustianas...)

Antes que tivesse tempo para responder, disse-me:
«Comprei este livro há muitos anos, influenciado por um debate televisivo em que um grupo de intelectuais o elogiava como sendo uma obra incontornável. Nunca li senão quatro, seis páginas, dez, vá. E era só o primeiro volume. São sete volumes! Perfeitamente ilegível. Horroroso!»
Fez uma pausa, e concluiu:
«Tenho a certeza de que nenhum daqueles grandes intelectuais foi capaz de ler esta pessegada...»

Não cheguei a falar, é claro.
Conto-o agora, por graça. Porque a verdade é que, sendo apenas meio intelectual, isto é, um intelectual sem o menor prestígio nem autoridade, li os sete volumes de Em Busca do Tempo Perdido. E considero Proust, com toda a sinceridade, o meu autor maior, o que me enche as medidas, o que me encanta e arrasta pelos níveis variados de um romance de muitos tomos, complexo mas, de facto, completo.

Dizia o meu primo: «Lemos Proust, e tudo parece de uma simplicidade extrema. Não há propriamente, na sua escrita, nenhuma indicação óbvia da grandeza desta. O que sucede é que, depois de o lermos, já nada mais nos satisfaz; o que sucede é que, depois de lermos Proust, por comparação, todos os outros - todos, todos, todos - nos parecem desinteressantes, pobres, frágeis...»
Tenderia a concordar. Talvez com excepções. Mas tenderia a concordar.

O texto de Proust reflecte e exprime um ponto aéreo da sua consciência, onde brotam e por onde perpassam ideias banais, daquelas que habitualmente não levamos a sério, se e quando é em nós próprios que afluem; e de que nos arrependemos, mais pela sua superficialidade do que por outra razão; ideias que, por tudo isto, não estamos habituados a formular e nunca nos lembraríamos de comunicar a outrem: pensamentos inacabados, mal pincelados, considerações flutuantes, voláteis, a que não damos importância cognitiva, entre a mera sensação e o vagamente intelectual, formam, pois, a quase impudica matéria de Proust: a verdade, porém, é que nos reconhecemos imediatamente neste strip-tease da consciência. Afinal, é produzindo pequenas e móveis ideias desse género, que também o nosso espírito constantemente preguiça, no seu impressionismo interior...

Por outro lado, as personagens são vivíssimas, realistas nas suas contradições e debilidades, mas encantadoras nessas mesmas contradições e debilidades - tão humanas. Assistimos a um percurso em que as vemos mudar ao longo do tempo e em que, simultaneamente, as vamos vendo e redescobrindo segundo muitos olhares, de diferentes pessoas.

Assim, Marcel, o narrador, descobre, por exemplo (suponho que o episódio é contado no último voluma de a Busca), num livro de um dos irmãos Goncourt...

Mas interrompamos desde já o que escrevíamos, para introduzir um parêntesis: esse livro, pretensamente da autoria de Goncourt, de que Proust transcreve mesmo um excerto (um excerto obviamente escrito pelo próprio Proust, à maneira de Goncourt, porque «tal» livro não existe, é uma peça de ficção) constitui um extraordinário pastiche, uma falsificação perfeita de um estilo, uma imitação admirável do espírito de um autor real...

... Mas dizia: nesse livro, Goncourt (pseudo-Goncourt) fala-nos - e trata-se de memórias - de um certo sujeito como sendo um génio; e no entanto, nós já conhecemos esse sujeito. Sob outras perspectivas, que nos tinham sido apresentadas antes, e ao longo da obra toda, fomo-lo identificando como um homem medíocre, sem grande rasgo nem imaginação. Temos, pois, de sobrepor estes dois retratos, compreendendo que, porventura, ambos são incompletos e nenhum traduz fielmente a realidade. E é absolutamente notável como Proust nos obriga a ir refazendo o que julgávamos saber, entregando-nos as personagens segundo as suas múltiplas faces e interpretações, e nunca definitivamente catalogadas.

Por outro lado, a forma como descreve minuciosamente o indescritível - um cheiro, um sabor, uma vaga impressão - torna a sua escrita uma imperdível aventura do espírito. Há um degustar das palavras que se harmonizam, sem comodismo, para descrever algo tão efémero como uma sensação.

A profundidade da obra de Proust revela-se numa das minhas personagens preferidas, que é Swann: homem elegante e sofisticado, convidado dos melhores salões (privando, por exemplo, com os Guermantes), mantém sempre uma discrição e contenção que são próprias do seu refinamento: não se exibe, nunca refere quem visitou, nunca faz gala das suas relações. E que delicioso - e dramático, ao mesmo tempo - percebermos como, sob efeito de uma paixão devastadora por Odette, ele será sucessivamente abandonado pelas pessoas de nome, que se recusarão a recebê-lo, agora, na companhia da sua nova esposa; para a enaltecer e satisfazer, fará gala de gritar bem alto as relações com aqueles que os aceitam e os convites que recebe de pessoas muito inferiores a si na escala social, mas incensados entre aqueles que contam para Odette (nomeadamente, os horrorosos Verdurin).


A obra de Marcel Proust merece ser lida e a sua leitura torna-se, a prazo, uma experiência inolvidável do leitor integral, em que nenhuma emoção ou gosto é marginalizado ou esquecido, mas acredito que não fixe imediatamente a si o principiante. Não me esqueço que grandes escritores (e, esperar-se-ia, talentosos leitores), como André Gide, que deveria dar ao editor o parecer sobre Em Busca do Tempo Perdido, o classificou desrespeitosamente como uma «história de duques e duquesas de festa em festa»...

Por mim, reconheço que tive muita sorte. Uma convergência feliz de ses levou a que Em Busca do Tempo Perdido esperasse, desde sempre, pela minha atenção. Se não fosse o meu avô, que se fazia acompanhar sempre de um Proust, se não fosse o meu tio, que tinha a obra, em francês, resumida a três volumes em papel-bíblia, se não fosse um extraordinário artigo de Borges, se não fosse a maravilhosa tradução de Pedro Tamen, se não fossem as discussões infindáveis com o meu primo, se não fosse um livro imperdível de Alain de Bottom sobre Proust, poderia nem ter vindo a conhecer o que, para mim, é o mais genial de todos os autores de toda a literatura.

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

ITALO SVEVO: A CONSCIÊNCIA DE ZENO


Aparentemente, Italo Svevo, pseudónimo de Ettore Schmitz, não entrou na literatura pela porta grande.
Os seus primeiros romances, que nunca li, foram duramente desqualificados pela crítica e, sobretudo, ignorados pelo público. Na sequência desta má recepção, aliás, abandonou a escrita literária.

Não preciso de ir muito longe para encontrar tal informação: leio-a no preâmbulo de A Consciência de Zeno, magnífica obra que redigiu e marca, após o tempo de desistência, o seu regresso à escrita, encorajado por James Joyce [que não era, à época, ainda conhecido e, como seu professor de inglês, entretanto tornado amigo e confidente, lhe pediu para ler os seus cadernos].


Não percamos tempo com adjectivos: Svevo é simplesmente extraordinário. Narra uma história quase comezinha, quase irrelevante, principiando por algo tão simples como uma personagem que procura abandonar o vício do tabaco. E depois, a partir deste início incipiente, vai construindo os patamares e os labirintos da consciência deste homem, o qual vai recordando e contando os seus sentimentos - o amor não correspondido, um falso amor em que mergulha sem saber como, seguindo um impulso ilógico, os seus ciúmes, invejas, ressentimentos...

A duplicidade deste anti-herói torna-o um irmão nosso, uma pessoa muito próxima de nós e das nossas contradições. Algo na sua percepção da realidade está ferido de um egoísmo e de uma insensibilidade quase ridículos - e, no entanto, é muitas vezes dessa imoralidade intrínseca, essa incapacidade para nos pormos no lugar do outro, que se fazem os movimentos da nossa consciência.

A sua escrita prende-nos imediatamente. Numa simplicidade que esconde um trabalho eficiente e, como lembra António Lobo Antunes, um apuro técnico incomum, Svevo, diante dos nossos olhos, vai povoando as páginas do seu romance com formulações de um fulgor e de uma profundidade que só o génio conseguiria.

É uma leitura do interior de um homem, em que o que lhe sucede não serve senão como pretexto para esta fenomenologia da sua consciência. Lê-se devagar. Saboreando tudo. Com os pêlos eriçados. A sensação, rara, de se estar num outro mundo literário, de se ter subido a um outro nível; literariamente, Svevo é incomparável: é outra loiça!

sábado, 24 de outubro de 2009

SARAMAGO: A PROPÓSITO DA RECENTE POLÉMICA

Conforme diz Nicolau Tolentino de Mendonça, em diálogo aceso mas cortês com José Saramgo, o problema não está tanto no livro Caim, da autoria do Nobel português. O problema está naquilo a que o
teólogo chama o «hipertexto». E de facto, como diria o Diácono Remédios, Num habia nexexidade.

E nem se compreende o sentido e o alcance das palavras com que Saramago, em discurso directo, agride a Bíblia e os crentes, a não ser por uma espécie de fé cega contra a igreja católica, apostólica, romana, ou por um acto publicitário que vise desta forma chamar a atenção sobre o seu último romance.

Nunca apreciei a personalidade de Saramago: talvez resida nessa depreciação a minha dificuldade em amá-lo como escritor. Qualquer coisa da sua arrogância, da sua presunção mas, ao mesmo tempo, da enorme banalidade de certas afirmações, que nunca se coíbe de fazer quando entrevistado, revestindo-as sempre da gravidade de uma sabedoria maior, unem-se para fundar um preconceito meu: já o leio a partir desse incómodo, dessa lente crítica e distanciadora.

Como não sou tolo, em relação a uma parte substancial da sua obra, contudo, a inegável qualidade impôs-se-me, furando a asfixia da minhe lente anti-saramago, preparada de antemão para o recusar. Assim, reconheço que Memorial do Convento é um grande livro, bem como O Ano da Morte de Ricardo Reis ou o Evangelho Segundo Jesus Cristo. Também Intermitências da Morte me parece, com efeito, um texto irónico extraordinário (tal como A Viagem do Elefante) - ao mesmo tempo que considero, por outro lado, o tão celebrado Ensaio sobre a Cegueira um livro paupérrimo, todo em torno de uma metafórica pouco inovadora, de que se abusou já muito, ou, A Caverna, uma obra menoríssima e, para além de tudo, muito aborrecida... Ah! E já agora: detesto Todos os Nomes!

Com esta tentativa de mostrar que não estou completamente inquinado pelo preconceito contra o homem-Saramago, distinguindo com algum fundamento, no que respeita à obra, o trigo do joio, abalanço-me, pois, a falar acerca de Caim, que ainda não acabei...

... Mas que já posso encarar como uma das melhores coisas que Saramago escreveu. Um pouco como se, de facto, a velhice revelasse, ao mesmo tempo, o progredir da sua senilidade ao nível do contacto humano e das relações (o progredir da sua senilidade quando é chamado a falar), mas, ao mesmo tempo, a maturidade que atinge como romancista.

Caim é um excelente tema? Claro que é, e não de agora. Recordo, para não recuar muito mais, o papel de James Dean em A Leste do Paraíso (a partir de um romance de John Steinbeck), representando um Caim moderno (isto é, dos anos 50), em luta contra um pai tirânico e injusto na maneira como o trata, em comparação com o cuidado que dispensa ao irmão.

Mas em Caim, precisamente, está tudo o que é humanamente mais rico, o ciúme e a inveja que contaminam as relações filiais e fraternas, o amor contraditório e incompleto, a injustiça, a desigualdade, a sem-razão. É por isso que me parece inteligente e literariamente interessante a laicização destas relações - Deus é um pai, e um pai, mesmo sendo Deus, é sempre uma figura injusta e dividida, com medos e dilemas. Deus não seria pai se não fosse este pai profundamente humano e irascível, cansado, em luta com o seu filho. E, claro, por mim falo. Embora não seja Deus.

Esta dessacralização do texto, ou melhor, esta dessacralização das personagens (Azael, que os expulsa do paraíso, é seduzido por Eva, deixando sempre ver uma comovente faceta piedosa...) não as desvirtua, antes as enobrece. É um romance profundo, tocado por uma ironia e por um humor corrosivos, que reduzem todo o mal à imperfeição humana, numa escrita que todos reconhecemos, nem sempre fácil mas muito bela e, de facto, muitíssimo inovadora.

Se ao menos o homem ficasse calado...!

sábado, 17 de outubro de 2009

SÓFOCLES: ANTÍGONA



Na escola, em estreita colaboração com a História e a Filosofia, ando a preparar entusiasticamente, na Biblioteca, uma sessão sobre Antígona.

O meu grupo de amigos tinha decidido, há algum tempo já, animar uma série de comunicações em que cada um de nós iria falar acerca de um qualquer tema por si escolhido: lembro-me de que a minha ideia era levar-lhes Antígona - tratando a magnífica tragédia de Sófocles; analisando a intensíssima personagem principal, de que a peça usa o nome ; falando sobre a incompreensão manifestada por Creonte acerca de tudo quanto Antígona, ao desafiá-lo, realmente simboliza e veicula; sobre a autenticidade e grandeza femininas dela (que, ao longo dos séculos, todas as feministas procuraram fazer suas); ou acerca das palavras sublimes mas obscuras e enigmáticas, maravilhosas (e maravilhadas) mas, por vezes duras, do Coro dos Anciãos Tebanos...

Nunca cheguei a fazer essa comunicação. Contudo, agora que regresso ao texto de Sófocles para o preparar para a escola, redescubro, com o misto de prazer e angústia que a Antígona em mim provoca, as frases lapidares dirigidas por uma mulher corajosa à sua irmã insegura e carregada de medos e dilemas: «Tu escolheste viver, e eu, morrer»; «não queiras partilhar a minha morte nem faças teu aquilo em que não tocaste. Para morrer basto eu», como se a morte fosse um privilégio reservado aos verdadeiros corajosos, aos que trabalharam por ela...
Ou contra Creonte, o irascível tirano que não percebe que há e haverá, acima da sua lei escrita, uma lei não escrita, infinitamente mais poderosa: «por causa das tuas leis, não queria eu ser castigada perante os deuses, por ter temido a decisão de um homem».

Ah, como dirá o coro, «muitos prodígios há, porém, nenhum maior que o homem», esse que doma e domina, ultrapassa e vence, que através da sua tecnologia tudo transforma à sua imagem e semelhança, cura doenças, desenvolve o pensamento, como se nada o detivesse nem ao seu poder - e, porém: «ao Hades somente não pode escapar».

Porque algo é obscuramente mais forte do que o homem, do que a sua razão e a sua imaginação, a sua astúcia política, a sua lei, a sua obra, a sua sede de poder, ou o efectivo exercício desse seu poder, através de uma tecnologia que ele desenvolve e continuamente multiplica.

Estou como Freud: quanto mais evoluídos nos tornamos, mais percebo que a essência radica na Antiga Grécia. Os Gregos já nos aguardavam. Sempre esperaram por nós, ainda nós não tínhamos nascido.

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

VALÉRY: OS ELOGIOS VENENOSOS

Em certas bocas, os discursos são milimetricamente estudados para que, sob as frases de aparência elogiosa, nas entrelinhas, se perceba o desprezo que o autor realmente nutre por aquele que as circunstâncias obrigam a elogiar.

Paul Valéry era um magnífico especialista nesse tipo insidioso de oração.
Veja-se a seguinte situação: acolhido pela Academia Francesa, em 1927, para o lugar vagado pela morte de Anatole France (na 1ª foto), Valéry (2ª foto) dedica-lhe um discurso, que considero uma obra-prima de perfídia e segundas intenções:

«Os mortos só têm os vivos como recurso, os nossos pensamentos são para eles o único caminho. A eles, que tanto nos ensinaram, parecem ter-se apagado por nós e ter-nos legado todas as oportunidades, é justo e digno que sejamos nós a acolhê-los nas nossas memórias a fim de beberem um pouco de vida nas nossas palavras.
«O público está infinitamente reconhecido ao meu antecessor e deve-lhe as sensações de um oásis. A sua obra surpreende-nos doce e suavemente pelo contraste refrescante com os estilos brilhantes ou bastante complexos existentes. Parecia que a leveza, a clareza, a simplicidade regressavam de novo à terra. São deusas que agradam à maioria. Gosta-se imediatamente de uma linguagem que se pode saborear sem ter de pensar muito, que seduz por ser tão natural e cuja limpidez, sem dúvida, deixa transparecer por vezes que existe um pensamento por detrás, não misterioso mas, pelo contrário, perfeitamente legível ou até bastante convincente. Havia nos seus livros uma arte consumada de abordagem das ideias e dos problemas mais graves. Nada nos faz deter a não ser a maravilhosa sensação de não encontrarmos neles qualquer resistência.
«O que há de mais precioso que a ilusão deliciosa da clareza que nos dá o sentimento de nos enriquecer sem esforço, de saborear o prazer sem pensar, de compreender sem ter de prestar atenção, de desfrutar do espectáculo sem pagar?
«Felizes os escritores que nos evitam o peso do pensamento e que tecem com um simples levantar de dedo um luminoso disfarce na complexidade das coisas.»

E poderia continuar na citação. Mas, para o que queria mostrar, parece-me suficiente.
Não vale a pena prosseguir, de resto: chego a ter pena de Anatole France.

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

AINDA CÉLINE: UM EXCERTO

«Sob aquele olhar de opróbio, o mensageiro claudicante pôs-se em sentido com os mindinhos na costura das calças, como deve ser feito nestes casos. Oscilava assim, hirto em cima do talude, com a transpiração a correr-lhe ao longo da jugular e os maxilares a tremerem tanto que emitia pequenos gritos sufocados, como um cãozinho que sonha. Não era possível descobrir se queria falar-nos ou se realmente chorava.
«Os nossos alemães, acocorados mesmo no fim da estrada, acabavam de mudar de instrumento. Era à metralhadora que prosseguiam com aquelas tolices; faziam-nas estalar como grandes caixas de fósforos, e à nossa volta vinham voar enxames de balas raivosas, irascíveis como vespas.
«Ainda assim, o homem acabou por fazer sair da boca qualquer coisa articulada:
«- O sargento-ajudante Barousse acaba de ser morto, meu coronel - disse de uma assentada.
«- E então?
«- Foi morto quando ia procurar o pão na estrada Des Etrapes, meu coronel!
«- E então?
«- Foi despedaçado por uma granada!
«- E então, com mil raios!
«- Só isso! Meu coronel...
«- É tudo?
«- Sim, é tudo, meu coronel.
« - E o pão? - perguntou o coronel.
«Foi este o fim do diálogo porque me recordo bem de ele ter tido tempo de dizer exactamente isto: «E o pão?» E pronto. Depois só fogo e também ruído a acompanhar. Mas um destes ruídos como nem se acreditava que existissem. Que nos encheu por completo os olhos, os ouvidos, o nariz e a boca, imediatamente, ruído ao ponto de eu julgar que estava tudo acabado, que eu próprio me tinha transformado em fogo e ruído.»

LOUIS FERDINAND CÉLINE: VIAGEM AO FIM DA NOITE


Que poderei dizer?

Este é, porventura, um dos textos mais desconfortáveis que já escrevi. Porque não se trata somente de admirar, mais ou menos, um escritor do PSD ou do CDS - e dizê-lo. Se fosse isso...!
Trata-se de uma outra coisa: falo da experiência profundamente perturbadora que é, de algum modo, a do amor pelo abismo.

Houve pensadores e criadores que pactuaram, politicamente, com aquilo que a humanidade produziu de mais medonho. Seria tão fácil, tão linear, tão sem sombras tortuosas para nós se, ao menos, eles tivessem sido, nas suas obras, os meros arautos e apologistas do regime odioso que serviram; nada mais do que os instrumentos medíocres da propaganda, que pudéssemos execrar...

Mas porque será que, pelo contrário, alguns deles são os artistas mais sublimes que já conhecemos? Por que razão haveriam de ser, estas pessoas que escolheram erradamente, pavorosamente, os autores de uma obra que poderemos até ignorar - mas, se por acaso a descobrimos, não conseguiremos senão amar?

Heidegger, por exemplo, que foi reitor de uma fulcral universidade alemã, no auge do nazismo; marginalizou professores judeus, chegando a retirar do seu livro a dedicatória, que constava na primeira edição, ao judeu Husserl, seu mestre; redigiu alguns dos discursos mais miseráveis acerca da grandeza da Alemanha ariana e do Führer; e morreu sem nunca ter mostrado qualquer arrependimento, será, de facto, e por outro lado, o escritor da obra de filosofia em que é inaugurado um autêntico pensar contemporâneo, projectando uma nova luz sobre o passado Grego e iniciando um modo tão original de reflectir, não segundo a lupa de ideias eternas e absolutas, mas a partir do tempo e do finito?

E Ezra Pound, que enalteceu o fascismo e o nacional-socialismo, pode ser de facto o poeta de uma obra poética culta, sensível, profunda - Cantos que, à imagem da Divina Comédia, transforma em poesia uma experiência aterradora, múltipla e multímoda, falando diferentes línguas, misturando e sobrepondo os fios do vasto arsenal da cultura humana?

Elia Kazan, denunciante, vendido de todas as formas, traidor, é realmente o realizador dos filmes incomparáveis que nenhum outro realizador - à parte, talvez, Orson Welles, que redescubro recentemente no Clube de Cinema - conseguiu igualar em inteligência e força? Lodo no Cais? Ou Esplendor na Relva? Nada que não seja, de facto, de uma qualidade suprema?

Chego ao pior de todos. Ou ao melhor de todos. Apresento-o em três ou quatro tópicos: Louis-Ferdinand Céline. Colaboracionista, apoiante do regime traidor de Vichy na França ocupada, escritor cujos artigos eram pagos por jornais simpatizantes de Hitler, autor confesso de um dos panfletos anti-semitas mais degradantes que conheço. Posto isto, como hei-de lidar com o facto inequívoco de que Céline é o autor de Voyage au Bout de la Nuit, e que esta sua viagem ao fim da noite se mantém, sem dúvida, um dos poucos livros que releio frequentemente, que nunca me cansam, que vejo, nas páginas que vou passando diante dos meus olhos, respirando génio em estado puro? Todas as páginas deste livro são revolucionárias. Todas as páginas? Caramba! Cada uma das frases merece atenção, atinge e fere, cada formulação é de uma ousadia e de uma novidade perfeitas. Nada nos deixa indiferentes na sua escrita em que ouvimos, linha a linha, soar a sua «petite musique», esse sentido íntimo do seu texto, em que coisa alguma se confunde com outra coisa já antes lida, em que não há lugares comuns nem imagens gastas...

E, é verdade, há uma estética do repugnante neste livro, que afasta certas pessoas. Eduardo Prado Coelho confessava o seu repúdio: «Em Céline, o segredo íntimo de cada ser está nessa humidade viscosa e agoniada, nessa baba intestina, nessa espuma aviltante das tripas e mucosas - o nuclear é o excremencial: "ce qui guide encore le mieux c'est l'odeur de la merde". [...] O universo de Céline é um inferno visceral. - É aqui que eu entendo melhor a repugnância liminar que me suscita uma escrita que é feita de roncos, perdigotos e metáforas viscosas

Tudo bem. Eu é que padeço, talvez, de alguma perversão oculta.

domingo, 6 de setembro de 2009

SIMENON: OS AMANTES DESENFREADOS


Existe, na Europa, um preconceito histórico contra a inteligência dos belgas.
Por mim, o povo que gerou, no seu seio, nada mais do que um Hergé e um Franquín, na banda desenhada; um Jacques Brel, na música; ou um Georges Simenon na literatura policial, só pode suscitar a maior admiração.

Passando por uma biblioteca em busca de «Simenon», deparo certamente com dezenas se não centenas de livros - a maioria, é claro, tendo como protagonista o celebérrimo Inspector Maigret, o seu chapéu, a gabardina, o cachimbo. O que não deixa de ser lamentável - não porque Maigret não seja de facto, como detective, uma personagem muito bem engendrada, com uma densidade psicológica notável, que não possuem outros, porventura muito mais conhecidos (de Holmes a Poirot); não porque não sejam romances intelectualmente muito bem urdidos, mas porque a obra de Simenon transborda por todos os lados desse mero registo: é mais extensa e mais variada, toca diversos estilos (as suas memórias, por exemplo, são fascinantes) e é fora do que dele foi mais divulgado que, porventura, lhe encontramos a veia mais original.


Tome-se, digamos, um livrinho praticamente desconhecido, que se chama O Quarto Azul ou Os Amantes Desenfreados. É uma primorosa lição de bem escrever. Nem se trata de um policial, no sentido mais vulgar do género. Sobretudo, falta-lhe a presença de qualquer investigador. Ao invés, estamos perante um par de amantes que se encontram, regularmente, no quarto azul de um hotel de província.

É em volta da morte do marido dela - primeiro - e da mulher dele - a seguir - que se vai desenvolvendo uma história de dúvidas e suspeitas.
O ângulo é o do homem: submetido a uma sucessão de interrogatórios, agora que tudo se consumou - mas o que se consumou, de facto: um duplo homicídio ou a estranha (e conveniente) coincidência de duas mortes naturais? - , ele vai-se questionando a si próprio, apresentando, ao juiz, a si, ao leitor, não os factos, mas as suas interpretações, as suas recordações, o que sabia, o que não sabia, o que vai entretanto descobrindo...

E com que mestria perfeita Simenon se repete, ou seja, retoma constantemente diálogos que já nos mostrara, de maneira que, perante uma nova luz, o sentido do que fora dito se renova, e se percebem, nas mesmas frases que já lêramos três ou quatro páginas atrás, outros cambiantes, uma significação nova, completamente diferente.

Georges Simenon é um desses autores que, sob a capa do que dele se vulgarizou, no limiar da iconografia, mantém secreto o que tem de melhor, guarda, quase oculto, o que mais vale a pena.