sábado, 16 de janeiro de 2010

ROBERTO BOLAÑO: 2666



Já há muito não subo a este blogue. Hesito na palavra passe, sinal mais do que evidente de que não tenho recorrido frequentemente a ela.

Não sei bem sobre que falar. Mas, afinal, sei. Isto é, de miríades de possibilidades que respiro (e se me referisse a Camus, de que se comemoram cinquenta anos da morte?, e se me referisse a John Fante, escritor semi-maldito que acabei de descobrir?, por que não a um português, digamos Nuno Morais, poeta malogrado por cuja poesia me apaixonei?), há já uma possibilidade mais forte do que as outras, que se define e torna nítida. No momento em que teclo estas palavras, já ela se esclareceu e tornou real. Bolaño. 2666. É isto.

De Roberto Bolaño, autor chileno, conhecia, quase por acaso, um livro chamado Os Detectives Selvagens. Se quisesse reduzir 506 páginas a dois adjectivos, escolheria estes: originalíssimo e desigual.

A linguagem é extraordinária; a narração principia e, durante muito tempo, mantém-se numa crueza hilariante; as personagens multiplicam-se na sua riqueza e autenticidade. Mas o problema é, em parte, precisamente esse: demasiadas personagens, implicando universos diversificados, num labirinto em que nos perdemos, sem dúvida interessante mas, é verdade, nem sempre igualmente
interessante. O entusiasmo do leitor vai-se esbatendo: cede a vez ao cansaço e à confusão.

O livro de que vos quero falar, todavia, é outro. 2666 tem uma história subjacente: avisado da proximidade da morte, Roberto Bolaño decidiu escrever um longo romance, de forma a que a sua família pudesse ficar amparada. Dividiu o gigantesco texto em cinco partes; transformou-o, portanto, em cinco romances, que pediu ao seu editor que publicasse em separado. Assim, durante pelo menos cinco anos, a mulher e os filhos poderiam sobreviver à custa dos direitos autorais...
Foi, porém, o próprio editor, homem inteligente, sensível, desrespeitador e de bom gosto, que percebeu que esta obra enorme não podia, sem prejuízo, ser espartilhada. Talvez mais tarde - mas numa primeira fase, tornava-se absolutamente imprescindível que o leitor tivesse aceso à sua unidade intrínseca.

2666, de 1025 páginas, é, portanto, o género de obra que costumamos referir como um «romance falhado», não querendo com isso propriamente menosprezá-la, mas tão-só caracterizá-la enquanto tentativa impossível de abarcar a totalidade. Musil, com O Homem sem Qualidades, e talvez também Proust, escrevendo Em Busca do Tempo Perdido (sem que em qualquer caso se trate de diminuir a grandeza ou o génio criativo que revelam), seriam autores de similares esforços para dar conta de todos os pormenores, todos os sujeitos, todo o passado, todo o presente e todo o futuro, num sistema universal e particular, aberto e fechado, um texto inconclusivo mas concluído.

Deparamos, em 2666, com a mesma diferença de universos («registos», como agora se diz) que em Os Detectives Selvagens: mas existe aqui, de algum modo, uma tensão equilibrada. Cinco partes que se lêem como romances diferentes, mesmo que a princípio a unidade ou o fio condutor que os liga pareçam ténues, conseguem encaixar-se, a prazo, como as peças de um gigantesco puzzle onde não temos, nem esperamos ter, senão no fim, uma visão de conjunto. A dispersão perturba menos, é quase uma condição organizadora de um todo que tende fatalmente a dispersar-se nas suas partes.

A narração de Bolaño é brilhante. O sarcasmo está sempre presente, como uma faca de ponta-e-mola; a noção do ridículo é uma constante que, todavia, nem por um momento faz com que nos distanciemos das personagens, ou deixemos de sentir fundamente a sua tristeza. O enigma que, de certo modo, se transforma em diferentes enigmas - onde está Archimboldi, quem comete a série de violações, quem comete a série de sacrilégios, e que terão estas interrogações que ver umas com as outras - permanece sempre audível e interessante, motor surdo de um suspense que subsiste às variações de ritmo.

Meu primo - de quem tanto aqui tenho falado, e de quem falarei porventura ainda mais, agora que sei que, lá da longínqua América, se foi tornando um leitor atento deste blogue - recebeu, no Natal, um exemplar deste livro. Iniciou-o: «Tem graça», afirma. Mas torce ainda demasiado o nariz. Há aspectos que lhe parecem forçados, como um experimentalismo bacoco em prol da originalidade pela originalidade.

Não digo que não leia, aqui ou ali, algo que pode ser atribuído a uma certa pose intelectual, a um certo brilho desnecessário, a uma originalidade vã. O que digo é que nada disto, nada, retira à progressão e à grandeza da obra, à sua ambição totalitária e ao pormenor da sua multiplicação por ângulos diferentes, às personagens, às situações, à comédia, à tragédia e ao mistério, uma grama que seja de sentido e força.

Não se pode fechar o sistema. Qualquer tentação e tentativa de o fazer não pode senão concluir-se num falso fim e num falhanço. Nevertheless, há falhanços magníficos. É o caso.

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