Em certas bocas, os discursos são milimetricamente estudados para que, sob as frases de aparência elogiosa, nas entrelinhas, se perceba o desprezo que o autor realmente nutre por aquele que as circunstâncias obrigam a elogiar.
Paul Valéry era um magnífico especialista nesse tipo insidioso de oração.
Veja-se a seguinte situação: acolhido pela Academia Francesa, em 1927, para o lugar vagado pela morte de Anatole France (na 1ª foto), Valéry (2ª foto) dedica-lhe um discurso, que considero uma obra-prima de perfídia e segundas intenções:
«Os mortos só têm os vivos como recurso, os nossos pensamentos são para eles o único caminho. A eles, que tanto nos ensinaram, parecem ter-se apagado por nós e ter-nos legado todas as oportunidades, é justo e digno que sejamos nós a acolhê-los nas nossas memórias a fim de beberem um pouco de vida nas nossas palavras.
«O público está infinitamente reconhecido ao meu antecessor e deve-lhe as sensações de um oásis. A sua obra surpreende-nos doce e suavemente pelo contraste refrescante com os estilos brilhantes ou bastante complexos existentes. Parecia que a leveza, a clareza, a simplicidade regressavam de novo à terra. São deusas que agradam à maioria. Gosta-se imediatamente de uma linguagem que se pode saborear sem ter de pensar muito, que seduz por ser tão natural e cuja limpidez, sem dúvida, deixa transparecer por vezes que existe um pensamento por detrás, não misterioso mas, pelo contrário, perfeitamente legível ou até bastante convincente. Havia nos seus livros uma arte consumada de abordagem das ideias e dos problemas mais graves. Nada nos faz deter a não ser a maravilhosa sensação de não encontrarmos neles qualquer resistência.
«O que há de mais precioso que a ilusão deliciosa da clareza que nos dá o sentimento de nos enriquecer sem esforço, de saborear o prazer sem pensar, de compreender sem ter de prestar atenção, de desfrutar do espectáculo sem pagar?
«Felizes os escritores que nos evitam o peso do pensamento e que tecem com um simples levantar de dedo um luminoso disfarce na complexidade das coisas.»
E poderia continuar na citação. Mas, para o que queria mostrar, parece-me suficiente.
Não vale a pena prosseguir, de resto: chego a ter pena de Anatole France.
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