Conforme diz Nicolau Tolentino de Mendonça, em diálogo aceso mas cortês com José Saramgo, o problema não está tanto no livro Caim, da autoria do Nobel português. O problema está naquilo a que o
teólogo chama o «hipertexto». E de facto, como diria o Diácono Remédios, Num habia nexexidade.
E nem se compreende o sentido e o alcance das palavras com que Saramago, em discurso directo, agride a Bíblia e os crentes, a não ser por uma espécie de fé cega contra a igreja católica, apostólica, romana, ou por um acto publicitário que vise desta forma chamar a atenção sobre o seu último romance.
Nunca apreciei a personalidade de Saramago: talvez resida nessa depreciação a minha dificuldade em amá-lo como escritor. Qualquer coisa da sua arrogância, da sua presunção mas, ao mesmo tempo, da enorme banalidade de certas afirmações, que nunca se coíbe de fazer quando entrevistado, revestindo-as sempre da gravidade de uma sabedoria maior, unem-se para fundar um preconceito meu: já o leio a partir desse incómodo, dessa lente crítica e distanciadora.
Como não sou tolo, em relação a uma parte substancial da sua obra, contudo, a inegável qualidade impôs-se-me, furando a asfixia da minhe lente anti-saramago, preparada de antemão para o recusar. Assim, reconheço que Memorial do Convento é um grande livro, bem como O Ano da Morte de Ricardo Reis ou o Evangelho Segundo Jesus Cristo. Também Intermitências da Morte me parece, com efeito, um texto irónico extraordinário (tal como A Viagem do Elefante) - ao mesmo tempo que considero, por outro lado, o tão celebrado Ensaio sobre a Cegueira um livro paupérrimo, todo em torno de uma metafórica pouco inovadora, de que se abusou já muito, ou, A Caverna, uma obra menoríssima e, para além de tudo, muito aborrecida... Ah! E já agora: detesto Todos os Nomes!
Com esta tentativa de mostrar que não estou completamente inquinado pelo preconceito contra o homem-Saramago, distinguindo com algum fundamento, no que respeita à obra, o trigo do joio, abalanço-me, pois, a falar acerca de Caim, que ainda não acabei...
... Mas que já posso encarar como uma das melhores coisas que Saramago escreveu. Um pouco como se, de facto, a velhice revelasse, ao mesmo tempo, o progredir da sua senilidade ao nível do contacto humano e das relações (o progredir da sua senilidade quando é chamado a falar), mas, ao mesmo tempo, a maturidade que atinge como romancista.
Caim é um excelente tema? Claro que é, e não de agora. Recordo, para não recuar muito mais, o papel de James Dean em A Leste do Paraíso (a partir de um romance de John Steinbeck), representando um Caim moderno (isto é, dos anos 50), em luta contra um pai tirânico e injusto na maneira como o trata, em comparação com o cuidado que dispensa ao irmão.
Mas em Caim, precisamente, está tudo o que é humanamente mais rico, o ciúme e a inveja que contaminam as relações filiais e fraternas, o amor contraditório e incompleto, a injustiça, a desigualdade, a sem-razão. É por isso que me parece inteligente e literariamente interessante a laicização destas relações - Deus é um pai, e um pai, mesmo sendo Deus, é sempre uma figura injusta e dividida, com medos e dilemas. Deus não seria pai se não fosse este pai profundamente humano e irascível, cansado, em luta com o seu filho. E, claro, por mim falo. Embora não seja Deus.
Esta dessacralização do texto, ou melhor, esta dessacralização das personagens (Azael, que os expulsa do paraíso, é seduzido por Eva, deixando sempre ver uma comovente faceta piedosa...) não as desvirtua, antes as enobrece. É um romance profundo, tocado por uma ironia e por um humor corrosivos, que reduzem todo o mal à imperfeição humana, numa escrita que todos reconhecemos, nem sempre fácil mas muito bela e, de facto, muitíssimo inovadora.
Se ao menos o homem ficasse calado...!
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