domingo, 4 de julho de 2010
PEDRO PÁRAMO, POR JUAN RULFO
Uma vez imaginei como personagem de um conto que escrevi, um escritor da América Latina que, sem ter chegado a publicar coisa alguma, acabaria por se tornar uma influência secreta e fundamental de toda a literatura latino-americana: quer porque falava, com amigos escritores, em encontros e tertúlias de café, acerca do que andava escrevendo; quer porque enviava, a editoras, manuscritos que nunca foram aceites mas, entretanto, passavam pelas mãos de escritores vários, que, inconscientemente ou não, os digeriam e reproduziam. De maneira que o seu estilo e as suas ideias iam marcando, semeando, correndo como uma força subterrânea, nunca tendo visto a luz do dia. O irónico contra-senso reside em que, muitos anos após a morte desse autor, quando os amigos se reúnem para lhe publicar finalmente a obra completa, descobrem, relendo-a, que esta parece uma gigantesca manta de plágios, uma série de cópias e de inoriginalidades, como se não tivesse sido ele o verdadeiro mas oculto modelo, o obscuro inspirador, o ignorado influenciador.
Há poucos dias, ao deparar com a Obra Reunida de Juan Rulfo e, aí inclusa, a notável novela Pedro Páramo, não consegui evitar um sobressalto: porque Juan Rulfo, escritor mexicano falecido em 1986, é perturbadoramente semelhante àquela minha personagem, na sua discrição e no desconhecimento que rodeou praticamente tudo quanto escreveu:
mas, não obstante, escritores ilustres como Gabriel Garcia Márquez, que o prefacia, Octávio Paz, Pablo Neruda, Juan Carlos Onetti ou Jorge Luís Borges são unânimes em reconhecer que estava lá, em gérmen ou explicitamente, o que viria a indicar quase todos os caminhos importantes das literaturas hispânicas, do realismo fantástico às estranhas geometrias borgesianas.
Pedro Páramo é, sobretudo, um texto inesquecível. Susan Sontag escreve: «Não é apenas uma das obras-primas da literatura mundial do século XX, é também um dos livros mais influentes do século, tanto que será difícil sobrestimar o seu impacto na literatura de língua espanhola.» Não é um romance - aliás, preferia chamar-lhe novela -, não é um romance fácil: os tempos misturam-se, de modo que nos precipitamos de um episódio para um outro anterior, ou posterior; o espaço dilui-se, ainda que a narrativa se concentre num lugar chamado Comala, onde, por sua vez, também os mortos e os vivos se confundem, e se encontram, hesitando, muitos vezes, acerca do seu estado. Estou morto? Estou vivo? Está morta? Falei agora com a tua mãe. Não é possível, minha mãe morreu há muito tempo...
Afirmar que se trata de um livro «difícil», significa que uma certa maneira de ler, rotineira, que se apega preferencialmente a um traçado de sequências lógicas e cronológicas, tem dificuldade em adaptar-se a esta narrativa em que tudo se funde e difunde: perdemo-nos no tempo ou na idade desta ou daquela personagem ao longo da história. (E, porém, impressiona como, a uma segunda leitura - porque este é um livro que carece de uma segunda leitura, claro -, tudo se encaixa luminosamente. Não há qualquer desleixo na oficina de Rulfo, existem uma ordem e uma lógica subjacentes, de um rigor impecável; Garcia Márquez lembra que o rigor é tal, que nem entre o tipo de plantas referidas, o lugar e a estação do ano há desacertos...)
Em todo o caso, se, num momento inicial da primeira leitura, sentimos que nada é dominado por nós, pelo leitor, a verdade é que se goza ininterruptamente esse modo de contar: porque a linguagem de Rulfo toca-nos sempre fundo. Pedro Páramo é um poema. E, tal como é vocação de toda a poesia, a sua missão é criar um mundo. Nesse mundo, chocam-se furores e movimentos aquém ou para além de toda a moral. O amor e o ódio, a vida e a morte.
E sublimemente se chocam, e se reúnem, e se desunem, na demanda de um tempo glorioso que há-de vir. O redentor reencontro dos amantes infelizes.
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