sábado, 17 de julho de 2010

QUASE DIÁRIO DE UMA LEITURA: AINDA ULISSES

Mas há passagens, páginas, capítulos que se tornam ininteligíveis.

O terceiro capítulo, com que me debato agora, é um exemplo. Eu diria que o equívoco reside neste pormenor: o puro exercício do pensar nunca pode ser lido por outrem. O seu movimento condutor é um fio interior, de si para si e, nessa medida, transparente ao próprio: posso, na minha mente, repetir obsessivamente uma palavra, posso associar palavras simplesmente por causa da semelhança da sua sonoridade, posso intersectar recordações, ou trautear vagamente refrões, ou até inventar neologismos; muito bem: tudo isso é a deslocação interior a que chamo, à falta de melhor, "pensar" - esse turbilhão de memórias, sons, sensações, repetições, ideias. Mas esse turbilhão tem, enquanto o vou construindo cá dentro, um sentido para mim, uma transparência. (Pelo menos num primeiro nível. Já sabemos que se me puser a "psicanalisar" esse primeiro sentido, descubro sentidos segundos, ocultos, recalcados, de que nem suspeitava...); ora essa "transparência" interior perde-se completamente no momento em que a transformo em palavras, em que a plasmo numa linguagem, a escrevo, a dou a ler a um leitor.

Há uma inundação delirante de imagens e frases (desvendando-nos o pensar de Dedalus), cujo sujeito da enunciação muda constantemente da primeira para a terceira pessoa do singular: não deixa de ser interessante; às vezes, neste monólogo interior, vejo-me como "eu", outras vezes como "ele". Mas também não facilita a vida ao leitor. Todavia, é, na verdade, muito belo. Como uma música, confesso, que não tem qualquer "significado", nem tem de o ter, ou como um poema, que nos cativa pela sua forma mas cuja semântica tenha deixado de importar. Num certo sentido, parece que somos arrastados pela torrente; estamos prestes a afogar-nos. Mas há pequenas rochas de sentido, há galhos que, não nos aguentando por muito tempo, permitem que respiremos fundo: refiro-me a situações que vão sendo intercaladas, de modo a não nos esquecermos do contexto - a visita a um tio doente - em que a torrente interior de Dedalus invade as páginas.

A propósito da experiência de se sentir arrastado nas águas vivas, sempre na proximidade do afogamento, não é fácil ir-se buscar um termo como «gostei» ou «estou a gostar».
Seja como for: é uma experiência cuja intensidade vale a pena...

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