sábado, 3 de julho de 2010

MILLÁS DE NOVO: OS OBJECTOS CHAMAM-NOS


Os objectos chamam-nos, decerto.
Exemplo de certo objecto que, acontecendo estar na proximidade, nunca deixo de ouvir chamar por mim, é um livro de Juan José Millás.

A escrita de Millás não tem a menor particularidade que surpreenda. Muito simples e agradável, isenta de especiais acrobacias estilísticas, clara e fluente mas comum. O que diferencia os textos deste autor é a forma como nos expõem um mundo próximo e estranho, de uma singularidade maravilhosa.

O planeta Millás tem um lado politicamente incorrecto que, no entanto, não choca, porque se não assume provocatoriamente: antes com a ingenuidade de uma criança que não tivesse tido tempo de interiorizar e aprender a lidar com determinadas convenções.

Aliás, a perspectiva é sempre a de alguém que não cresceu: muito do seu humor radica nessa transferência incompleta, para o mundo dos adultos, de um adulto que só exteriormente o deveio; as referências e a lógica de Juan José Millás dizem respeito aos desenhos animados e aos mitos infantis: a presença distante e protectora da mãe, os amigos invisíveis, o desejo sexual que se desenvolve na visão de um manequim (um boneco de montra), que sua das axilas...

Algo de perverso assombra de maneira fascinante este universo. As referências infantis são desordenadas a partir de impulsos quase patológicos. Poderia inventar uma espécie de conto policial em que alguém assassina, precisamente, um amigo invisível?

Com Os Objectos Chamam-nos estamos perante qualquer coisa que não saberíamos classificar adequadamente: pequenos textos desligados, que poderiam ser contos de duas, três páginas, mas nem sempre têm a forma habitual de contos - às vezes, dir-se-ia que se aproximam de observações ou de memórias; mas mesmo quando nos mergulha em pleno absurdo, por alguma misteriosa razão fá-lo com uma seriedade e uma credibilidade que se tornam profundamente realistas. Como se a sua tarefa fosse a de mostrar que certos impossíveis são, contudo, incontestáveis factos.

Millás é de uma graciosa originalidade. O seu humor é contagiante. Já no livro que anteriormente dele lera, me tinha sucedido rir alto, atingido de frente pelo cómico de uma situação narrada. Rimo-nos, às vezes, por aproximação - aquele não seria exactamente o nosso humor, mas anda perto: o humor de Millás não me faz rir por aproximação. Atrai as minhas gargalhadas com a maior das simplicidades, e elas comparecem. É fatal.

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