sexta-feira, 30 de julho de 2010

CHICO BUARQUE DE HOLANDA: BUDAPESTE


Devo, e é justo, principiar este comentário pela confissão e explicação de um preconceito.

Não consigo imaginar um cantor português, mas nem um só, escrevendo um romance que não fosse um péssimo romance. Penso em Carlos do Carmo ou José Cid, penso em Luís Represas ou Teresa Tarouca. Sérgio Godinho, bem sei, de vez em quando escreve umas coisas, mas são letras a que chama poemas. Há, realmente, poesia que se transforma em excelente letra de canção; mas isso não significa que todas as excelentes letras de canções constituam, ipso facto, boa poesia. Portanto, não imagino que os cançonetistas tenham por força que ser bons escritores. É um preconceito? É um preconceito. Uma ideia completamente irrazoável, sem a mínima razão de ser? Calculo que sim: por alguma razão se chama pré-conceito!

Suponho que, de algum modo, este pé atrás me terá insuflado uma espécie de aversão imediata em relação aos livros de Chico Buarque de Holanda. Perguntavam-me «Já leste Budapeste?». E eu torcia o nariz. Depois, saiu Leite Derramado, e eu torci o nariz. Não me dava, sequer, ao trabalho de folhear. Passava ao largo dos livros de Chico Buarque, nas livrarias. Torcia o nariz.

Mas há destas coincidências. Comecei a ler Budapeste, unicamente porque fora ver o último filme de Roman Polanski, Escritor Fantasma, e esse filme me conquistou até ao tutano; entretanto, num artigo acerca de ghost writers, descobri que o romance de Chico Buarque de Holanda era sobre, nem mais: um escritor fantasma, ou seja, um desses anónimos pagos para «produzir artigos de jornal, discursos políticos, cartas de amor, monografias e autobiografias que outros assinam». E dei por mim a pensar: «Mas que excelente tema! Que talentosa ideia tomar por protagonista um fantasma destes». Reparei, um dia, que o livro estava a 5, 95 (desculpar-me-ão a franqueza de avaro). Comprei-o.

E fui descobrindo que Chico Buarque é um escritor maior. A função interessante da personagem (o escritor fantasma) é a casca que se recheia, aos poucos, com o conteúdo concreto que é José Costa, um homem com ideias e obsessões, desejos, gostos. Mas, mais do que isso, a história está semeada de ideias inteligentíssimas - dessas que, todavia, nos permitem perceber, pela sua duração, se o talento do autor é ou não genuíno. Explico-me: quando um autor menor depara com uma boa ideia, tem, obviamente, receio de a largar; e, portanto, insiste nela, estica-a, fá-la durar mais do que o devido, como se, de algum modo, temesse não haver muitas mais, lá de onde aquela veio; e esse é um primeiro teste que Chico Buarque passa com nota alta (se é que tivesse de passar algum teste imposto por mim, o que não é o caso): as boas ideias encontram, aqui, sempre o lugar certo e, sobretudo, o tempo certo; uma vez postas a navegar, o autor deixa-as ir, sem medo.

Depois, existem ligações extraordinariamente bem feitas. O tema "Budapeste", por exemplo, que tem que ver com o impacto da língua húngara sobre o narrador, deixa de estar presente quando este faz uma espécie de digressão pelo seu passado, e é retomado, de uma forma inesperada, sem pré-aviso, mas sem atrito, a propósito dos estranhos sons emitidos pelo seu filho que, afinal, imitava o balbucio do pai nos seus sonhos. O narrador escreve: «Calou, e a Vanda saiu em sua defesa; ele está só te imitando. Imitando o quê? Imitando você, que deu para falar dormindo. Eu? Você. Eu? Você. Desde quando? Desde que chegou dessa viagem. Pronto. Descobri naquele instante que em meus sonhos eu falava húngaro». E não é necessário mais: desta forma simples se reata o tema só aparentemente perdido, e se avança nesse tom vagamente surrealista.

Mas isto são meros pormenores técnicos. Sobre eles, à custa deles mas sem que deles nos apercebamos, se elabora um romance metafísico e irónico. Há pais, é claro, mas são dos melhores: a metafísica relembra certas incursões pelos duplos típicas de Borges; a ironia, que poderia parecer, inicialmente, pedida a Eça de Queirós, cedo se define melhor: é de Graciliano Ramos. Mas se tenho necessidade de ir buscar todos estes pergaminhos e observações, como se para um cantor se tratasse, ainda, de ter de passar um exame, é por causa do meu preconceito. Na verdade, Chico Buarque de Holanda é tanto um escritor quanto um cantor. Nos dois casos, com maiúscula.

Mil perdões pela desconfiança. A partir de agora, juro que lerei, nem que seja um livro escrito por Luís Represas.

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