segunda-feira, 19 de julho de 2010

CAMILO CASTELO BRANCO: OS MISTÉRIOS DE LISBOA

É muito fácil, aos intelectuais, denegrir e ridicularizar o conceito e os exemplos de telenovela. Mas, a propósito de telenovelas, gostaria de lembrar dois pormenores. Primeiramente, que algumas houve que foram primorosas adaptações de obras de qualidade, como Grabriela, de boa memória, ou a portuguesa Chuva na Areia. Em segundo lugar, que o formato "telenovela" descende de digníssimos antepassados: nomeadamente o "folhetim" (diariamente, em um jornal) e o "romance de cordel" (vendidos em fascículos, regularmente).

Alguns dos melhores autores portugueses dedicaram-se à escrita do folhetim e do romance de cordel. Tinha saída: uma novela principiava a ser publicada e era deixada debaixo da porta, gratuitamente, na esperança de que as pessoas comprassem as seguintes. Todas as semanas era vendido um novo número, com a continuação de uma história rocambolesca, que mantivesse os leitores viciados, pelo que teria de sustentar um "suspense", promessas de magníficas reviravoltas, segredos profundos, personagens exuberantes, nem sempre muito profundas, mas com inesperados alçapões e espantosas revelações escavadas a passados obscuros.

É evidente que a fórmula é superficial e não tem como prioridade senão fazer render o peixe; não devemos esperar dela muito mais do que o expediente a que recorreram escritores que precisavam de ganhar dinheiro: no entanto, terá sempre esse valor e esse interesse históricos e biográficos, no pior dos casos; e, no melhor (quando calhou o autor ser efectivamente uma pessoa de génio), revelar-se a genuína descoberta de um texto que merece que o leiam por si mesmo...

Assim é com Mistérios de Lisboa. Podemos sorrir da ingenuidade com que se nos oferece esse incredível padre que, no seu passado, terá sabido ser cigano ou pirata; ou essas outras personagens que são autênticos e tenebrosos enigmas ambulantes, que só muito adiante se perceberá a que vêm exactamente; não precisamos de levar demasiado a sério aqueles amores românticos e desesperados, de "perdição", na verdadeira acepção da palavra; é natural que nos sintamos distantes dos diálogos gongóricos, das tiradas grandiloquentes. Mas por que seria o realismo necessariamente melhor? Por que não haveríamos de fruir também este espírito da aventura, em que tudo é possível, cheio de palpitação, numa efervescência que acelera o ritmo cardíaco?

O talento de Camilo Castelo Branco está plasmado em cada linha. Imaginamos as donas de casa ou as sopeiras, que foram sempre grande leitoras - quando sabiam ler -, seguindo, de mão intranquilamente pousada sobre o coração, as desventuras desta mulher maltratada, separada do filho legítimo de um amor ilegítimo, tísica e infeliz; os estratagemas deste padre Dinis, que foi tudo na vida e tudo estará pronto a ser de novo, em defesa dos indefesos; a maldade sobranceira daquele irmão, sem piedade, da protagonista, a súbita conversão (e "explicação") do marido à hora da morte, a troça cruel e maledicente - e hipócrita - dessas mulheres de sociedade, com as quais, no fundo, Camilo estaria ajustando as suas contas. Entramos, cavalgamos. Não se diga que perdemos tempo. Nunca se diga que se perdeu tempo lendo mesmo o pior de Camilo, que é melhor do que a maioria do que por aí se faz nas Letras...

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