segunda-feira, 17 de abril de 2017

STEFAN ZWEIG: JOSÉ FOUCHÉ



Provavelmente, foi escrever sobre o Barão Corvo que me trouxe à memória um livro interessantíssimo, de Stefan Zweig, que tenho discutido com meu irmão se lho emprestei, se o perdi, se simplesmente se encontra fora de vista, entre outros livros meus, mal arrumado.
Não sei bem por que razão estas figuras da vida e da História me perturbam tanto. O padrão é: homens inteligentíssimos e de enorme criatividade, mas sem escrúpulos absolutamente nenhuns. Talleyrand seria o meu predilecto (?), porque, evidentemente, a todos estes elementos acrescenta uma verve e uma ironia que se traduziram em frases e epigramas de uma acutilância e de um sentido de humor cruéis. Mantenho com tais personagens uma pérfida relação de admiração-ódio, que só um psicólogo experiente conseguiria explicar.

A capacidade de sobrevivência de Fouché é digna de menção. E, como parte dela, a sua leitura imediata dos acontecimentos e o seu sentido de antecipação: foi um jacobino ferrenho, que conspirou contra Robespierre assim que percebeu que este principiara a retirar-lhe a confiança.  (Tratando-se de Robespierre, não era preciso ser-se um Fouché para se intuir como terminaria o alastrar da suspeita). Guilhotinado aquele, Fouché começaria, em breve, a conspirar contra os conspiradores, porque  também estes mostravam reservas (ironicamente, por causa da sua primitiva ligação a Robespierre). Foi, mais tarde, ministro de Napoleão. Conspirou contra o corso quando o prenderam, mas o próprio o recuperou, ao escapar da ilha de Elba e ao formar o célebre governo dos 100 dias.

Aliás, a este propósito, meu irmão conta-me a história dos 3 sucessivos títulos de um jornal apoiado por Talleyrand, aquando da fuga de Bonaparte. Primeiro: «O Assassino em Fuga»; segundo: «Napoleão Aproxima-se». Terceiro: «O Imperador Voltou». É este espírito, comum às duas raposas velhas, Fouché e Talleyrand, poderosos ministros de todos os governos que passavam, revolucionários e contra-revolucionários, anti-monárquicos e monárquicos novamente, que faz da sua facilidade em trocar de camisa, uma espécie de arte, que desprezamos e contudo nos fascina. Às críticas, Talleyrand retorquiu, com toda a sua soberba e cinismo: "À minha volta é que tudo muda. Eu sou o único que sempre se manteve igual a si próprio."

Zweig, como sempre, é magistral na composição do retrato psicológico da pessoa. Mostra o dinamismo camaleónico de José Fouché como o efeito de uma ausência de vincos de carácter demasiado marcados ou marcantes, um deliberado apagamento de si, uma fuga a toda a luz: o seu génio movia-se unicamente na sombra. Fez dos bastidores o seu habitat, nisso, antitético do rival Talleyrand, que em todo o lado brilhava sem esforço. Fouché evitou sempre as reuniões ou os comícios onde se esperaria que interviesse; não precisava de aparecer para reivindicar publicamente os louros das suas próprias jogadas. Manobrou como a serpente. Teve nas mãos, em diversas fases, um poder imenso. Usou e abusou sem piedade do seu poder. Sem piedade nem remorsos, sem ideologia nem princípios que não o de manter-se à tona. Ou melhor: não propriamente à superfície, mas sob a superfície, onde o não vissem, e de onde tudo e todos via.

terça-feira, 11 de abril de 2017

FR. ROLFE (BARON CORVO): HADRIAN THE SEVENTH



The Quest for Corvo, se bem se lembram, é o título de uma biografia que me deixou estupefacto com o seu objecto: o homem que se auto-denominava Barão Corvo, cuja genialidade perversa revela um narcisista de rostos múltiplos, intratável, inadaptado, embusteiro, e que escreveu, entre muitas obras, Hadrian the Seventh. A. J. A. Symons, autor da biografia, interessou-se pela figura graças precisamente a esse romance, que lhe caíra casualmente sob os olhos, e de que descreve, deste modo, o início: 

«O proémio apresenta George Arthur Rose esforçando-se em vão por trabalhar, quase prostrado com a dor de um braço, no vigésimo dia após uma vacinação. O seu trabalho é a escrita; e pela detalhada descrição subsequente dos seus pertences e do ambiente, torna-se tão credível como claro que este pobre, só e misantrópico sofredor, num quarto-cama suburbano, é um homem notável e um autor em luta. Há muitas personagens na literatura destinadas a imprimir uma tal convicção no espírito do leitor; muito poucas o conseguem.» A conclusão, naturalmente, é que, ao contrário de tantos, Rolfe consegue imprimir essa convicção. E porquê? Por causa do seu talento, sem dúvida. Mas, sobretudo, se «este homem recebe instantaneamente vida nas páginas de Fr. Rolfe», isso sucede «pela melhor de todas as razões (como descobri mais tarde): porque ele era o próprio Fr. Rolfe

Leio Hadrian the Seventh e... como? Ai não vo-lo tinha dito? Peço perdão, estou muito excitado. Recebi, finalmente, a encomenda, após meses de espera. Não terminei ainda a leitura, mas vou rascunhando estas notas à medida que progrido, e tê-la-ei concluído no momento em que publique o presente post. O proémio é tão interessante como prometido: os vívidos pormenores do quarto arrendado, onde George Arthur Rose, esfaimado e deprimido, vive com o seu gato, numa permanente angústia, constituem um mundo concreto, que respira. Vemos o quarto; lemos, sobre o ombro do misantropo, os artigos da actualidade que lhe interessam no jornal do dia, à medida que ele conta, maniacamente, os  verbos no infinito e almoça uma parca sopa; vemos o seu caderno de transcrições, numa escrita arcaica; o dicionário pessoal de expressões latinas e gregas, com as quais enriquece a sua prosa em inglês; ou os livros que pede emprestado à senhoria, e consome enfastiadamente, ao mesmo tempo que enrola e fuma (fá-lo constantemente) o seu precioso tabaco.

A inesperada e inquietante visita dos dois ilustres prelados é absolutamente central, por muitos motivos. Antes de mais, mostra-nos de que forma uma situação extremamente implausível vai conquistando toda a credibilidade, ao longo e mercê de uma conversa eléctrica, sob o signo do profundo ressentimento de George Arthur Rose e do sentido de remorso e de justiça de Sua Eminência: é um diálogo perpassado de queixas, paradoxos brilhantes, reflexões sobre a condição humana e a vocação divina da igreja, e de improbabilidades que se vão tornando aceitáveis e consistentes. Propõem-lhe, 20 anos após haverem-no rejeitado, a admissão, como sacerdote, no seio da igreja católica. Sim: vêm para pedir desculpa e reparar a injustiça. Por outro lado, seguimos, como quem escuta depois à porta, a discussão entre os dois visitantes acerca da visita que vieram de fazer, e do homem que os recebeu. É uma análise surpreendente, como se o autor (que é, afinal, o próprio protagonista) saísse de si para, pela voz dos prelados, se olhar imparcialmente, sem medo de reconhecer a sua excentricidade e o tom artificial, de teatro, presente no modo como se dirigira às eminentes visitas e estas, entre si, criticam.

Existe uma neurótica mudança de,  como agora se diz, "registo", e todos os registos são assombrosos. Da já mencionada descrição de ambientes e estados psicológicos, para os extensos artigos de jornal, sobre a situação na Rússia ou sobre o Conclave em Roma, dos diálogos vertiginosos, à Oscar Wilde, para a demorada e fascinante confissão de George Arthur Rose, que é um ensaio de psicologia sobre a relação amorosa do homem consigo, com o próximo e com Deus, ou mesmo da observação minuciosa, e penso que correcta em todos os pormenores, das intrigas que subjazem ao processo de votação que elegerá o Papa, passando pelas críticas venenosas aos jornalistas e às razões da sua ignorância, em todos os quadros e através de uma superabundância de meios, a obra de Barão Corvo contém um poder desigual mas sempre enorme e magnético. Já agora, convém acrescentar que a escolha do pobre George Arthur Rose para Papa, é bem menos convincente, ainda que decorra de uma situação fascinante, e engenhosamente concebida.
Resta perguntar: de todos os argumentos para justificar e explicar os actos de George Arthur Rose/ Fr. Rolfe, até que parte crê o próprio, esse intrigante Barão Corvo? Até que ponto vê, de facto, nos outros, os malfeitores e os inimigos, e, em si, a contínua vítima de homens falsos, "amigos" traiçoeiros e maldosos? A resposta do seu biógrafo é: crê piamente na sua versão. A isto se chama, é claro, paranóia. Sempre considerei que, justamente, a paranóia é uma eficaz oficina de ficção.

sábado, 8 de abril de 2017

GABRIEL GARCIA MÁRQUEZ: O AMOR EM TEMPOS DE CÓLERA


Ainda que Cem Anos de Solidão, lido durante uma juventude desesperadamente romântica, tenha sido um romance que me submergiu torrencialmente, por alguma (infundada) razão acabei definindo Gabriel Garcia Márquez, no geral, como um autor menor. Preconceitos que nos engasgam: talvez o motivo fosse uma persistente comparação entre ele e Mario Vargas Llosa, formada já numa fase muito posterior à da leitura que tanto me preenchera, fase essa em que: 1) procurava há muito um certo livro de Llosa e não o achava em livraria alguma, enquanto a obra de Márquez invadia  todas as prateleiras 2) a truculência reaccionária de MVL  exercia sobre mim um estranho fascínio, em face do qual GGM representava o papel de intelectual morno e «politicamente correcto».

Descubro, agora, O Amor em Tempos de Cólera, e percebo o calibre da minha injustiça. A mão de Márquez é genial. A fulgurante construção da narrativa, a novidade e a beleza das imagens, a cultura que permite a reconstituição da época, revelam um Autor Maior; reconheço, de certa forma, aquela escrita. É-me familiar: vou recordando, através dela, o engenho e a imaginação que já me haviam encantado em Cem Anos de Solidão, que aparentemente tinha esquecido.

O Amor em Tempos de Cólera é a história de um amor tenaz, obsessivo como uma vocação ou um destino. Trata a paixão de um jovem sem pedigree, Florentino Ariza, por Fermina Daza, uma rapariga bela e altiva, a filha de um homem rico mas pouco instruído, o qual, precisamente por essa razão, aspira a que ela ascenda, por via do casamento, a um ambicionado estatuto na sociedade. Ariza, o poeta, nunca desistirá: nem de lhe fazer uma corte longa e sem sucesso; nem (quando ela finalmente lhe aceita o namoro), perante a ameaça do pai, que, a seguir, a levará a viajar, para que ela o esqueça de vez. Nem mesmo, pior do que tudo isso, quando a própria Fermina Daza, regressando da sua viagem, o reencontra, afinal fisicamente medíocre, sem qualquer luz ou magnetismo, e o rejeita, cruelmente, pela segunda vez. Ou sequer quando, algum tempo após, ela principia o namoro com um jovem e pretendido médico, o Dr. Juvenal Urbino, com quem se casará, partirá para uma demorada lua-de-mel europeia, e de quem, por fim, engravidará.

 A fluidez da estrutura contagia-nos o estado de espírito: personagens que parecem fundamentais, mas se vão de nós, e personagens que julgamos secundárias, até que abrem um percurso principal da história; episódios que diríamos fixar o contexto central, quando, na verdade, são apenas a ligação para outros contextos, outros ramos do todo. É água a correr sob os nossos olhos: o suicídio, o xadrez, manias, família, ambições, chantagem, viagens, tragédias, o ridículo, a perda, o perdão e o imperdão, a música, o amor, o desamor e diferentes ou até opostas formas de fidelidade, não cessam de correr com tamanho ímpeto e tal leveza, que mal nos apercebemos de que a estas quase 400 páginas subjaz um organismo maravilhosa e milimetricamente concebido.

segunda-feira, 3 de abril de 2017

GILBERT CESBRON: OS SANTOS VÃO PARA O INFERNO


«Crescer é tornar-se infiel.»
Gilbert Cesbron, É Mozart que Assassinam

Tenho andado em maré de recordações literárias. Os livros que trouxe das estantes de meu irmão, ou os que lia em adolescente, por exemplo Enid Blyton e Júlio Verne, ou os que me marcaram como um ritual de iniciação ao tempo de leitor adulto. Curiosamente, no meio desse processo, houve uma bizarra, nebulosa e inexplicável paixão que me guiou, sei lá! diria que pelos 15 ou 16 anos. De onde me saiu a primeira obra de Gilbert Cesbron, sou incapaz de precisar: alguém a emprestara a minha mãe? A meu irmão? E qual era? Os Santos Vão para o Inferno, sobre a infernal vida dos padres-operário? Ou aquele, cujo título não recordo, acerca de uma elegante jovem de facies horroroso? Outra pergunta: porque me terá fascinado a tal ponto essa série de romances da autoria de um escritor católico francês? Nunca mais voltei a pensar nele. Alguma associação, há pouco, mo devolveu subitamente à memória.
Desse contacto incompreensível, retenho, agora, quatro coisas: o prazer dessa leitura; um episódio particular de um dos seus romances: um jovem que se preparou diligentemente para copiar num exame, ordenando, diante do espelho, as cábulas em diversos departamentos de um casaco "especial" - fintado pelo pormenor de as estar a colocar perante um espelho, que inverteria a direita e a esquerda, confundindo-o completamente no momento-chave (o momento do exame, claro); outro episódio, que já aliás mencionei: uma rapariga muitíssimo feia, procurada por uma colega que, ao dar-se com ela, realça a própria quase-beleza; e, last but not least, uma particularíssima utilização dos parênteses, a que me rendi de todo, maravilhado pelos efeitos, e que não tenho dúvida de que ainda hoje imito, embora nunca mais me tivesse lembrado da génese de tal influência. Gilbert Cesbron foi ultrapassado pelo tempo, por novos interesses, descobertas e fascínios maiores. Tornei-me ingrato e infiel ao que me concedeu. Mas, como afirma o próprio: que mais significa crescer senão isso?

sexta-feira, 3 de março de 2017

ALDOUS HUXLEY: A ILHA


O quarto de meu irmão 11 anos mais velho do que eu, no apartamento onde vivíamos, em Lourenço Marques, era, para mim, a caverna de Ali Babá. Para entrar como visitante clandestino, o "Abre-te Sésamo" reduzia-se a que o mano se tivesse ausentado. Havia um barco telecomandado; havia misteriosos mapas do mundo; havia uma colecção de soldadinhos de plástico, não de chumbo, que eu me entretinha pondo-os a guerrear uns contra os outros, sobre um dos mapas, para que invadissem ou defendessem fronteiras; porta-chaves [mas talvez esteja equivocado: a deliciosa colecção de porta-chaves podia estar em outra casa, quase em outra vida]; umas folhas onde colegas dele haviam desenhado a sua caricatura, ao lado de uns poemas bem-dispostos, alusivos a certa ida à praia do Tofo. E livros. O Idiota, que foi o meu primeiro Dostoievski, O Músico Cego, de um contemporâneo russo, talvez O Admirável Mundo Novo mas não posso jurar, alguma coisa de Papini, O Homem, de Irving Wallace, O Desprezo, de Moravia, O Livro de San-Michele. Lembro-me destes.

Ora li há pouco, numa revista, alguma referência a determinada obra de Huxley, reeditada recentemente como um romance distópico. Interessei-me, cheguei a procurá-lo por livrarias. Não o achei. Entretanto, por mero acaso, vasculhando nas minhas próprias estantes, apercebi-me, perplexo e eufórico, de que o possuía - A Ilha, numa edição "Livros do Brasil", com uma dedicatória escrita pela amiga que o oferecera, em 1967. Pois. Entenderam tudo: trouxe-o, entre muitos outros livros, da biblioteca de meu irmão, a saudosa caverna de Ali Babá em que me iniciei na prática de tantos espantos. Mais: recordo-me perfeitamente de o haver lido. A avaliar pela data, bem jovem. Releio-o agora, ansioso por descobrir em que medida a narrativa se me vai revelando, na forma de um conhecimento antigo como o mundo, recalcado mas de alguma maneira familiar, pronto a despertar, a reemergir, a regressar, a devolver-se-me. Esta leitura, perdão, esta re-leitura é, pois, em si, uma experiência maravilhosa.  

O início do texto é poderoso. Mesmo inesquecível - salvo que eu o esquecera completamente; devo acrescentar que, juntamente com o incipit de A Condição Humana, de Malraux - outra re-leitura, minha, por estes dias -, o começo de A Ilha demonstra a mestria fulgurante do autor: a situação incompreensível que nos agarra de imediato, a estranheza de uma floresta circundante que o protagonista, acordando de um desmaio, não reconhece nem entende, esse ambiente pontuado por uma voz de comando que, vinda de algures, retoma ciclicamente as mesmas palavras, são elementos que introduzem simultaneamente o enigma e um suspense avassaladores.

Curiosamente, adiante, narra-se o episódio do encontro de Will com duas crianças nativas, falando todavia um inglês perfeito, e de súbito a memória salva-se aos escombros para vir respirar ar puro: toco, hoje, precisamente na mesma dúvida que me havia já assaltado então: quando a menina insiste com o náufrago para que descreva o pânico experimentado em face das serpentes que podiam tê-lo matado, e o conte uma outra vez, e mais uma, até que, por força do repetir da história e da sua banalização, as emoções que lhe estão associadas se diluam e desapareçam, duvido de novo que uma garota fosse capaz de dominar uma tal técnica.

Depois, mais adiante, tropeço em outros momentos familiares. A descrição das personagens é sempre muito viva: Sua Alteza ou o jovem príncipe são indivíduos extraordinários, nos paradoxos de uma inocência incapaz de adivinhar os males contidos nos seus projectos. É interessante, aliás, que tratando-se de um romance engagé, não se esvazie da riqueza narrativa ou da subtileza dos pormenores em prol da tese que visa ilustrar.

Porque, francamente, que é uma obra de tese, é. Como, aliás, tudo quanto, praticamente, Aldous Huxley escreveu: romances sobre o sacrifício da natureza e do elemento natural no homem, asfixiados por sociedades artificiais, subjugadas à lógica de uma super-industrialização que, destinada a beneficiar os indivíduos, cedo se torna no princípio da sua mecanização e da sua infelicidade. Um pesadelo. Todos os seus romances - e este não é excepção - abrem oportunidades a longas digressões que são autênticos tratados de filosofia, psicologia, sociologia.

Mas que, por outro lado, a arte de narrar nunca se degrada por esse motivo, nem a criação de personagens profundas, com inúmeras e contraditórias camadas, também é verdade.

domingo, 19 de fevereiro de 2017

SIMONE DE BEAUVOIR: MEMÓRIAS DE UMA MENINA BEM-COMPORTADA


Às vezes tropeço em mim a pensar que ninguém se conhece realmente a si próprio. E a concordar com Nietzsche, que cito de memória: conhecer-se é o mais difícil tipo de conhecimento. Daí que, em última análise, as memórias tenham sempre uma parte de involuntária ficção. As recordações são interpretações, e há que suspeitar do modo como nos explicamos a posteriori.

Em nenhum livro isso me pareceu tão evidente como em Memórias de Uma Menina Bem-comportada. As razões que a filósofa atribui, anos volvidos, aos comportamentos da criança de 4 ou 5 anos que ela foi justificam tanto tais comportamentos, como, inversamente, e olhados a essa luz, tais comportamentos servem para justificar antecipadanente a sua teoria filosófica. É um círculo vicioso. Onde descreve birras e zangas perfeitamente inaceitáveis, que, se eu a elas tivesse assistido, me fariam comentar «raios! mas que garota tão mal-criada», Simone de Beauvoir detecta profundas razões existenciais, uma surda indignação da menina contra a sem-razão das regras do mundo [em que não vê nenhuma necessidade, tão-só a arbitrariedade] ou a revolta contra a sistemática representação de papéis pelos adultos quando lidam com as crianças.

«Foi por isso que resisti vivamente quando a avó me quis ensinar as notas musicais. Ela indicava com uma agulha de tricotar as bolas inscritas na pauta; tal linha equivalia, dizia ela, a tal nota no piano. Porquê? Como? Eu não via nada de comum entre o papel e o teclado. Quando pretendiam impor-me regras injustificadas, revoltava-me; da mesma maneira recusava as verdades que não eram reflexo de um absoluto. Só queria ceder à necessidade; as decisões humanas eram causadas mais ou menos por caprichos, não tinham suficiente peso para forçar a minha adesão.»

Os existencialistas tomam, quase por princípio, a consciência infantil como uma fonte de escolhas com profundas implicações filosóficas. É sempre nesse contexto filosófico que recordam as crianças que foram. As Palavras, de Sartre, que nem por isso deixa de ser um livro interessantíssimo, ilustra o mesmo pecado, que consistiria em apresentar todas as escolhas infantis como precoces decisões éticas, sob o peso esmagador de uma reflexão acerca da condição humana. Pode ser que eles estejam certos, e eu não. Pode até ser que eu alimente esse preconceito, relativamente às crianças, de que S. de B. fala, e tenda a vê-las como seres incompletos, senão como «coisas».

Em todo o caso, o brilho que nos cativa nestas memórias é o de um tempo já tão longínquo de nós, representado mais através de deliciosas irrelevâncias do que de grandiosas movimentações da história e da política. Reencontrar o tempo perdido (e sim, há um deliberado tom proustiano nesta obra), tratando de coleccionar fragmentos efémeros, sons, sabores, cheiros, visões, modos, tiques, lugares, é um processo melancólico, mas irresistível. Os bolinhos de areia que a criança fazia, um martelinho de alcaçuz, uma écharpe de musselina verde, da mãe, as silhuetas e as vozes dos pais, discutindo, as patilhas brancas e o boné do avô paterno, as flores do jardim deste, a colecção de cartões com duas fotografias que o estereoscópio transformava numa imagem a três dimensões, ou álbuns que se «animavam ao toque do polegar», o carro puxado por cavalos, e cujos bancos cheiravam a pó e a sol. E, entre todas estas fulgurações, a emergência da importância e do poder das palavras (precisamente como em Sartre) ou a importância e o poder da linguagem - a qual, primeiramente, se revela enganadora, porque acreditamos que «recobre exactamente a realidade», como se entre a palavra e o seu objecto se não concebesse «distância alguma onde o erro pudesse imiscuir-se»; mas que vai, aos poucos, ganhando os contornos de um instrumento subtil e flexível, que nos ensina a pensar, no gume da dúvida e de uma distância em relação a toda a realidade.
    

Por que razão o título sugere como bem-comportada esta menina que, no desfiar das memórias, nos aparece como tendo um feitio difícil, acessos bruscos de mau-humor, capaz de convulsões de irritação perante as quais os adultos se mostram impotentes? Boa pergunta. O equívoco deve-se, porventura, à tradução. Não sei como verter para português, numa única palavra, o "rangée" de Mémoires d'une Jeune Fille Rangée, mas não significa propriamente "bem-comportada": antes enquadrada (a ideia é mais essa), ajustada às ideias e aos valores do meio burguês em que nasceu e foi educada. E portanto este livro é, também - ou: é, principalmente - o reconstituir de uma desconstrução que a autora foi fazendo ao longo da sua vida, ou de uma desaprendizagem: a progressiva autonomia entendida como libertação relativamente a um modelo de vida, a uma ordem burguesa em que circula a má-fé.

Nesse sentido, é claro, os desaforos da menina seriam já salutares episódios de revolta. Porque se o seu mundo parece sereno e indubitável a maior parte do tempo, pelos interstícios da serenidade burguesa emergem pontos de fuga para o temível, para o infinito, para o caótico. «Por vezes um rasgão deixava entrever por detrás da tela pintada profundidades confusas». E não só a Primeira Grande Guerra, que eclode ainda durante a sua infância, mas, no dia-a-dia, a secreta percepção da instabilidade. Mesmo o Jardim do Luxemburgo, onde brincava amiúde, está longe de uma completa domesticação, com as suas «moitas intocáveis» e «relvas proibidas». São profundidades confusas, tais como os túneis de metro, que lhe pareciam fugir para o infinito, em «direcção ao coração secreto da terra», ou como um depósito de carvão, no Boulevard Montparnasse, de onde saíam homens de rostos mascarrados, e com sacas de serapilheira enfiadas na cabeça.

Em tal medida, como afirma Hegel, escolhemos o nosso próprio passado. Ou seja, interpretamo-lo como um projecto que nos anunciava desde o início - e justificaria, em potência, a nossa actual visão do mundo e a nossa filosofia.    


sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

BALZAC: O TIO GORIOT


A universalidade de uma obra não se funda certamente em que ela haja sido criada fora do tempo e da história, no seio de uma espécie de mundo inteligível, não sujeito à mudança nem à corrupção. Deve-se a que um autor genial, influenciado pelo seu meio e pela sua época, até pelos tiques da moda, tenha conseguido usá-los como meios para produzir o que se não esgota nestes, mas os supera, e permanecerá para além deles.

Veja-se Balzac. Analisemos a sua escrita. É um modo de escrever «datado». Hoje, que o cuidado descritivo parece ter perdido o valor, que os jovens o repudiam e todos nós dele nos fomos desabituando, hélas!, ler um romance como O Tio Goriot significa, antes de mais, e desde as primeiras páginas, submergir num preciosismo da descrição, uma tessitura requintada, que tenta dar a ver à imaginação do leitor a pensão da senhora Vauquer, geograficamente, situando-a com pormenor na «Rua Neuve-Sainte-Geneviève», entre «o Bairro Latino e o Bairro Saint Marceau», ou económica, social, arquitectónica esteticamente, apresentando-a na sua degradação, no seu isolamento, na sua pouca limpeza, nas suas cores, nos seus cheiros, no cafarnaum de móveis, cortinados e bibelôs que a preenchem. Mas não ficamos por aqui. Ainda nada sucedeu diante dos nossos olhos, e são expostos os retratos psicológicos dos diversos ocupantes dos vários quartos da pensão. O papel e o estatuto sociais de cada um, traduzidos, em última análise, no tipo de quarto em que se instala e na renda estipulada.

Pode parecer vão e entediante, se não estivermos atentos ao facto de como, nesta descrição detalhada e exaustiva, se ilustra um microcosmo no interior de um cosmos que é a cidade de Paris do século XIX. O que faz a universalidade da obra de Balzac é, pois, primeiramente a forma como se capta a realidade de certa época segundo a visão de um artista que é, simultaneamente, um historiador, um sociólogo, um psicólogo, um economista e um filósofo; e, por outro lado, o modo como, apreendendo multifacetadamente esse mundo multifacetado, se compreende o pathos humano no que este pode revelar de melhor e de pior. Só em I Promessi Sposi, de Manzoni, encontrei nos últimos anos esse poder para descrever um tempo transcendendo-o para alcançar na sua pureza a experiência mais autêntica e intemporal do amor, da cobardia, da generosidade e da mesquinhez.

Não é despiciendo que, para além de todos os conhecimentos de que Balzac se dota para escrever a sua obra, se mostre ainda tão perspicaz ao intuir a etiqueta na forma como as damas da aristocracia parisiense recebem: refiro-me a um conjunto de regras latentes, que só um fino observador detecta como reguladoras das suas conversas. Um exemplo: Rastignac, jovem estudante arrivista, obcecado por penetrar no perímetro da Alta Sociedade, vai visitar uma viscondessa, ligada a si por um vago e remoto galho da árvore genealógica, com o fito de que ela o esclareça [o jovem acabara de cometer, noutro lugar, uma gafe que nem sequer o próprio compreendera muito bem], e, sobretudo, o guiasse na desejada e penosa ascensão; enquanto se apresentam, é anunciada outra dama: uma duquesa. Esta entra. Afáveis, corteses uma com a outra, como se fizessem dele a testemunha de uma antiga amizade. O leitor, a par de antecedentes que o jovem desconhece, apercebe-se imediatamente da duplicidade hipócrita do diálogo que se trava entre elas; entende como, sob a aparência de uma inocente e agradável troca de palavras, as duas mulheres se alfinetam perfidamente. Oferecem-se mútuas informações que poderiam passar por mera fofoca, se não soubéssemos que ambas estão conscientes de que o conhecimento que ali partilham se destina a magoar a outra. A maneira, contudo, como procedem, segundo um ritual bem treinado e consolidado, de limites perfeitamente estabelecidos, onde nunca se perde a compostura, e se utiliza o rosto do elogio para mascarar as intenções mais viperinas, é toda uma arte - em que Eugénio de Rastignac terá de se educar.

Esta é a comédia humana, em que as diferentes pessoas vão revelando de si surpreendentes ângulos, consoante o lugar que o engenho e a sorte lhes oferecem. Rastignac ou Goriot não são absolutamente maus nem absolutamente bons. O mais íntimo deles, ora vil, ora ingénuo, ora de uma inesperada grandeza, vai sendo exposto, em função de condições aleatórias mais do que propriamente de estratégias decididas. Embora algumas personagens planeiem a vida. A carta que Rastignac escreve à mãe e às irmãs, chorando por dinheiro, que sabe que só com sacrifício reunirão, é abjecta. As lágrimas e os remorsos com que lê a resposta não deixam de nos tocar. Goriot, que pagava inicialmente «mil e duzentos francos de pensão», que se «munira de um guarda-roupa bem fornecido, um magnífico enxoval de negociante que não se priva de coisa nenhuma ao retirar-se do comércio», com a «sua pesada corrente de ouro guarnecida de berloques» ou a sua «tabaqueira de ouro», foi-se transformando, por amor das filhas que o desprezam, num homem sem nada, enxovalhado por todos, triste e soturno. Herói e anti-herói, sublime e miserável, arrastado para a situação trágica que os demais lêem como cómica, foi sempre, no fundo, um simplório, um medíocre - embora o seu coração albergasse dois sentimentos sublimes: pela esposa, de que enviuvou, e pelas filhas. É por tudo isto que a obra de Balzac é universal: no concreto de cada indivíduo e da sua circunstância, aprendemos a ler o próprio Homem.

 

terça-feira, 17 de janeiro de 2017

A.J.A. SYMONS: THE QUEST FOR CORVO, An Experiment in Biography


O tio Drosselmeyer, padrinho de Clara, é o relojoeiro com misteriosos poderes mágicos (um dos quais seria, parece, o de conceder vida aos brinquedos: oferece-lhe, aliás, o Quebra-nozes...), que surge não se sabe de onde, durante uma festa, transformando o tempo das crianças num momento exaltante, para desaparecer, sabe-se lá para onde, até porventura uma próxima festa.

É desta personagem de O Quebra-nozes que me lembro, quando meu primo, tão frequentemente referido no Profissão: Leitor [alguém me perguntava, outro dia, se um tal primo existe mesmo, ou é uma fantasia minha] quando meu primo, dizia eu, regressa de férias a Portugal , produz as suas maravilhosas operações de feitiçaria, e a seguir retoma as viagens para distantes paragens. As operações mágicas ganham, geralmente, a forma de conversas e de livros. Este Natal, recebi, dele, o Ruskin, traduzido e abundantemente comentado por Proust. Tem de ser magia. Mas não se ficou por aí: deleito-me agora, também graças a meu primo, com uma estranha biografia sobre um mui bizarro sujeito, de cuja vida e obra eu não tinha sequer o menor conhecimento. Frederick Rolfe, auto-designado Barão Corvo.  

O livro é antigo. Pertencera a meu tio que, ao que descubro, o leu e sublinhou apaixonadamente. A.J.A. Symons, autor, faz nesta obra algo que me soa absolutamente original em matéria de biografia.

O início é este:

«A minha pesquisa sobre Corvo começou por acaso num verão, à tarde, em 1925, na companhia de Cristopher Millard. Estávamos preguiçosamente sentados no seu jardinzinho, falando acerca de livros que não conheceram a merecida recompensa no que respeita à apreciação e à influência. Mencionei Wylder's Hand, de Le Fanu, uma obra-prima de construção, e as Fábulas Fantásticas de Ambrose Pierce. Após uma pausa, sem comentar os meus exemplos, Millard perguntou: "Já leu Hadrian o Sétimo?"»

«O início é este», escrevi. O início, tanto da biografia, como na medida em que o episódio aqui relatado será o ponto de partida para a pesquisa que Symons empreenderia: Millard emprestou-lhe Hadrian VII e, na leitura desse romance o biógrafo descortina a intensa presença de Fr. Rolfe, escritor de um talento sublime, cujas personagens sentem, pensam, e falam com uma vivacidade impressionante. Como Cristopher Millard haveria de revelar mais tarde a Symons, a autenticidade dos caracteres do romance provém do facto de se basearem (brilhantemente, é certo) em pessoas de carne e osso, com as quais Rolfe terá convivido; o protagonista, George Arthur Rose, injustamente acusado, e expulso do seminário, impedido de se tornar sacerdote, é o próprio Rolfe. Com a reparação que, 20 anos depois, a igreja acabará fazendo da injustiça cometida contra a personagem George Rose [falamos de uma reparação ficcionada, portanto], acolhendo novamente no seu seio aquele que se tornará nada menos do que Papa [Adriano VII, precisamente] Rolfe imagina e regista a sua vingança contra todos os que o humilharam, perseguiram, acusaram e procuraram liquidar moralmente.  

A originalidade reside, pois, em que ao invés de lermos linearmente a história de Rolfe, acompanhamos a averiguação a que o biógrafo se devota. Estamos, portanto, face a um «problema», apresentado desta maneira: quem é o homem de enorme talento, que se oculta sob pseudónimos e títulos diversos, um dos quais, o de Barão Corvo, poderá nem ser autêntico? Depois do problema, a busca de pistas para a investigação. Symons começa uma fervorosa troca epistolar com diversos indivíduos que terão privado com Rolfe, muitos como seus amigos, vários como seus inimigos, e que, quase todos, inspiraram, de uma forma óbvio, as personagens de Hadrian VII.  Ora, que se obtém desta exaustiva e minuciosa correspondência? O vivíssimo retrato de um homem fascinante. Perguntei-me, algumas vezes, se não se trataria de uma peça de ficção travestida de biografia. Não. Qualquer rápida consulta do Google me garante o carácter real de Rolfe: homossexual sem quaisquer problemas em relação à sua homossexualidade (o que deveria ser raro numa época em que estes podiam ser condenados); de uma inquieta curiosidade, que o leva a dedicar-se à pintura, à fotografia, só mais tarde à escrita; inventor de engenhos, cuja concepção e planos acusa outras pessoas de lhe terem roubado; convertido ainda adolescente ao catolicismo; alimentando a obsessão de se tornar sacerdote, via essa que, efectivamente, lhe negaram; tendo vivido na mais terrível indigência; contraindo dívidas sobre dívidas, que justificaria com histórias mirabolantes e muito improváveis; sem amigos; caindo cada vez mais na paranóia de que o mundo inteira o incompreende e persegue; multiplicando cartas em que pede dinheiro - primeiro, muito dinheiro, alegadamente para investir em projectos, finalmente quantias como 5 £, para comer; insistindo sempre no seu estatuto de Barão, Frederick Rolfe é a figura extrema do charlatão genial. Ou do louco incapaz de distinguir entre fantasia e realidade. Ou de um exímio fabricante de embustes, para quem a mentira é, afinal, uma forma superior de Arte. Um autor maldito. Um autor bendito.

Conseguirei encontrar Hadrian VII?


sábado, 31 de dezembro de 2016

QUE ESTE VENHA A SER O ANO QUE SEMPRE QUISERAM


Espanta-me um pouco que os meus posts tenham tantos leitores; não o digo com vaidade, realmente apenas com surpresa. O meu mais lido de sempre, sobre O Retorno, vai em quase 3 milhares de acessos.

Espanta-me também que, com tantos leitores, este blogue tenha tão poucos seguidores. 93, nem mais um. Não o digo como lamúria, apenas - uma vez mais - com surpresa.

A todos, os que são seguidores e me lêem, os que são seguidores e não me lêem [espero que os não haja: de resto, como leriam esta mensagem?], os que me lêem mas não se tornam seguidores, os meus votos de um excelente 2017. Com momentos fantásticos proporcionados pela leitura. Mas também com fantásticos momentos entre leituras.

Obrigado pela paciência.

JOHN RUSKIN TRADUZIDO POR MARCEL PROUST: LA BIBLE d'AMIENS


John Ruskin era um excêntrico. Mas há muito que procuro lê-lo na íntegra, cativado por aquelas passagens, de que achei citações, em que perora contra o progresso tecnológico; pelo olho sensível com que se apercebeu da importância dos pré-rafaelitas e pela divulgação que fez da obra destes; pela influência que exerceu desde cedo sobre Marcel Proust, o nec plus ultra da literatura no meu cânone pessoal; e porque o meu primo mo aconselhou diversas vezes, sobretudo a propósito dos seus geniais vislumbres sobre Veneza.

Foi, obviamente, meu primo quem me ofereceu La Bible d'Amiens: a visão (como chamar-lhe de outra forma?) que Ruskin teve da cidade e, no coração da cidade, da sua sublime catedral. Mas, mais do que o acesso ao texto inteligente e profundo de Ruskin, tive-o numa tradução do próprio Proust, que principia por nos apresentar a obra e o autor.

É Proust, aliás, quem nos explica em que sentido devemos interpretar a escolha da palavra «Bíblia» no título. A Bíblia de Amiens é o pórtico ocidental da catedral, uma bíblia no sentido próprio e não figurado, uma «bíblia de pedra»: «esse mundo de santos, essas gerações de profetas, esse séquito de apóstolos, esse povo de reis, esse desfile de pecadores, essa assembleia de juízes, esse esvoaçar de anjos, uns ao lado dos outros, uns em cima dos outros» [Caramba! que maravilha.]

No seu prefácio, Proust abre-nos o universo do mestre: faz a ligação, que o leitor deleitado agradece, entre diferentes obras de Ruskin, tão erudito que raramente se repete de texto para texto, mesmo quando o que já referiu em algum, viria tão a propósito em outro, como ilustração do que está tentando sustentar agora. Percebemos a admiração, o êxtase. Percebemos tudo quanto Marcel Proust reconhece dever a Ruskin: mais do que ideias, conhecimentos, experiências (tanto de leitura como de peregrinação aos lugares mencionados), também uma certa forma de dirigir o olhar e, sem dúvida, uma sensibilidade própria na escrita. Mas Proust não é o discípulo cego - ele distancia-se, intui os erros e expõe-no-los com a sua perspicácia.
«Não é que eu desconheça as virtudes do respeito, é mesmo a própria condição do amor. Mas nunca ele deve, quando cessa o amor, substituir-se-lhe, para permitir-nos crer sem exame ou admirar por confiança,»

O desvio sistemático que Proust identifica em Ruskin, a sua «parte frágil», é a «idolatria». Curioso termo para designar um crítico cristão. Chamar-lhe-íamos «fetichismo», não fosse a conotação que a palavra veio ganhando. Em síntese: o Belo é uma via para a verdade; John Ruskin busca, na beleza das obras cristãs, uma expressão da presença de Deus. Porém, de tal modo a coisa bela emana a verdade, que é como se a contivesse, a encarnasse. A partir de então, objectivamente, não a vemos já como símbolo do que devemos adorar, mas como o que é adorável por si mesmo.

Todavia, até «a parte frágil» devém encantadora. Em Ruskin, segundo Proust, ou nas singulares formulações em que aquele capta as coisas de que nos fala, encontramos uma elevada beleza, e essa beleza, por vezes ambígua e desconfortável para o leitor, toma uma autonomia própria ainda que o que ele afirma deslize para a «idolatria», ou que não seja factualmente verdadeiro. É sempre uma interpretação que nos atinge, nos delicia, mesmo que não creiamos nela e não possamos aderir ao seu conteúdo. Um exemplo, dado por Proust, desse desconforto ante o erro apresentado numa formulação muito bela: «Não é menos certo que essa passagem de Pedras de Veneza é de uma grande beleza, ainda que seja muito difícil compreender as razões dessa beleza. Ela parece-nos repousar sobre algo de falso e temos algum escrúpulo em deixar-nos arrastar

Posto isto, o poder de Ruskin é assombroso. E multímodo. Pessoalmente, atribuo à palavra «Bíblia», aqui, um sentido diferente, sabendo que nunca esteve no espírito da escolha de Ruskin: o seu livro acerca desta catedral deve ser visto como uma Bíblia de Amiens. Diante dos nossos olhos estupefactos reconstitui-se a cidade desde os seus primórdios, e vão-se redepositando as sucessivas camadas históricas e culturais que, num dado momento, a cristalizaram como uma cidade de águas, qual Veneza. Ruskin narra os episódios da formação de França a partir de Amiens, e a origem, a originalidade e a expansão do seu cristianismo. Nada é irrelevante: somos o «viajante inglês inteligente» que observa, pela janela do comboio, as 50 chaminés, de entre as quais sobressai uma, que não lança fumo, e é uma flecha em direcção aos céus; lembra Saint Firmin, que introduziu a fé num povo pagão, sob a ocupação romana, mas ensinado por Druidas; conta episódios históricos, ou mitos, ou meras mas saborosas lendas populares sobre Clodion, Mérovée ,Childéric, e sobre Clovis e Clotilde, reis dos Francos. Apresenta-nos caminhos alternativos para nos aproximarmos da catedral, consoante o tempo de que disponhamos, ou o estado atmosférico do dia. Por todos os poros da sua escrita magnífica e exaltada, sentimos a atenção ao pormenor e a capacidade de resgatar ao esquecimento algum detalhe em que porventura não repararíamos. Proust evoca um episódio revelador: Ruskin destaca, algures, uma das figuras minúsculas dispostas junto ao portal das Livrarias na catedral de Rouen; descreve-a com uma delicadeza e um charme inesquecíveis. Marcel Proust foi, um dia, visitar a catedral, que aliás já conhecia, em busca dessa figura. Pareceria impossível detectá-la: são centenas de criaturas de poucos centímetros. E, porém, reconheceu-a - Ruskin oferecera-lhe, de algum modo, a imortalidade, arrancando-a a centenas de peças que se confundiriam, quase semelhantes, numa massa anónima; interessara-se por aquela, como se dissesse: é esta, ei-la!, e concedeu-lhe vida, extraindo-a do nada.  

Um dia, terei de visitar Amiens, com a Bíblia nas mãos.

segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

ARTHUR MILLER: FOCUS


Hesito na confidência que não há-de abonar a meu favor: mas quando me falaram acerca de Focus, de Miller, parti imediatamente do princípio que se tratava de um romance da autoria de «Henry» Miller, o qual, ainda para mais, escreveu vários com títulos de idêntica terminação latina, como Nexus ou Sexus. Foi, portanto, já no momento em que o encomendava, que se desfez o ridículo equívoco - era Arthur Miller, que a minha ignorância não reconhecia senão como dramaturgo, o autor do célebre Morte de um Caixeiro Viajante.

É um romance que tem por tema a identidade. Como na obra de Pirandello, onde, frequentemente, um pormenor físico (por exemplo, o nariz que pende para o lado direito) é suficiente para transformar certa personagem e, transformando-a, alterar o modo como os demais a percepcionam, também o entrecho de Focus assenta no facto de Mr. Newman começar a usar uns óculos que, por alguma estranha e súbita razão, mudam não apenas a sua fisionomia, mas, digamos, a essência da sua fisionomia: Newman, que não é judeu, começa a ser visto como um judeu.


Este ensaio (chamemos-lhe assim, apesar de ser uma obra de ficção) sobre a identidade, e sobre o que faz uma identidade, ou acerca das características mínimas que configuram a maneira como nos olham, e como nós próprios passamos a olhar-nos, é brilhantemente conseguido. O romance vive de uma estrutura eficaz na forma como joga com os equívocos. Apreciem, por exemplo, o modo como o protagonista descobre que não terá, afinal, quaisquer possibilidades num emprego para que se candidatara, e cuja empresa ele acreditava, durante muito tempo confiante, que o chamaria.

 Newman, que, repito, não só não era judeu mas, acrescento, até um anti-semita - alimentando um anti-semitismo não violento, uma repelência visceral em relação ao "outro" - vai viver situações em que se tornou, ele, o alvo do desprezo, do desrespeito, do afastamento dos amigos e vizinhos, despromoção, despedimento.

À época, anterior à intervenção dos EUA na Grande Guerra, estamos perante uma América profundamente anti-semita, em que se assiste a uma "limpeza" dos bairros, e os vizinhos não-arianos se vêem insistentemente pressionados a mudar; onde, nos trabalhos de atendimento ao público, se faz questão de que não sejam visíveis pessoas de "aspecto judaizante"; onde pregadores e associações de cariz nazi atraem a si fanáticos unidos no ódio ao outro. Mas o que é o outro, o que faz do outro um outro, sendo os EUA uma nação que se criou e recriou integrando fluxos de novos imigrantes em busca de um sonho? O que faz do outro um outro num país que foi sempre um mosaico heterogéneo?

O romance falaria por si, sem proselitismo, sem explicações suplementares. A passagem escusada seria, pois, aquela, já nos derradeiros capítulos, em que o judeu do bairro argumenta com Mr. Newman, de forma a, indirectamente, se esclarecer o leitor sobre a lição a retirar. Espanta, até, que Miller, numa narrativa em que tudo funciona tão subtil e subliminarmente, tenha sentido necessidade dessa explicitação do seu ponto de vista. Mas o próprio facto de percebermos que esse episódio é inútil, mostra até que ponto Focus, mais do que o texto didáctico e político que, necessariamente, também é, importa e vale literariamente, como uma obra de arte maior.     


sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

DOMINGOS AMARAL NA TV


Houve um tempo em que os "intelectuais", por razões de compromisso ético, viam a intervenção pública como um imperativo. Eram entrevistados, vinham à televisão, falavam em comícios. Acrescentavam o microfone e o megafone à pena. O homem ser estrábico, roufenho ou gago, devinha irrelevante em face deste seu dever político ou cívico. Os "intelectuais" eram engagés. Viam-nos e ouviam-nos porque a sua voz física, ainda que entaramelada, exprimia uma posição.

Há-os, ainda. Escritores que pensam que o seu estatuto lhes confere um suplemento ideológico. Os candidatos à presidência convidam-nos, os partidos convocam-nos. Mas existe, cada vez mais, outra coisa, também.

A «outra coisa» consiste em escritores que evoluem (ou degradam) para comentadores. Não por terem uma posição cívica a defender, mas porque sim. Ou que evoluem (degradam) para personalidades-residentes em programas de política, cultura e/ou entretenimento. Se nada tenho a opor à ideia por princípio, se reconheço até que alguns literatos são excelentes comunicadores (vale sempre a pena escutar Clara Ferreira Alves, por exemplo, e Pedro Mexia tem wit), devo acrescentar que outros há que se não percebe ao que vão. Ou por outra, percebe-se: dará sempre jeito acrescentar uns tostões à mesada. Mas não deviam preocupar-se com a sua imagem? Não seria de pensar duas vezes antes de se aceitar um convite? Verificar se têm talento para aparecer no pequeno ecrã, se falam bem em público, se não fazem tristes figuras? Lá dizia o Salazar, que, ao menos nisso, via longe: Isto da televisão é um teste decisivo para os políticos: poucos lhe sobreviverão... Bem, pois para os "intelectuais" também.

Desagrada-me cair  numa argumentação ad hominem, mas, caramba! Domingos Amaral, que é um romancista que se lê com certo gosto e algum proveito, tem aceitado ir falar de futebol num programa, das suas irritações em outro, de não sei que mais em não sei onde mais. O homem vai a todas e, sinceramente, não devia. Porque se atrapalha, é pouco claro, se fixa em duas ou três ideias que não relaciona nem desenvolve, porque não consegue argumentar. Vê-lo no último Irritações explicar a diferença entre Fidel Castro, um «filho da puta genial», como lhe chamou, e outros ditadores, tornou-se um exercício penoso. Nem sequer por razões ideológicas, mas porque não se percebia o que diacho queria dizer e onde queria aportar, numa salgalhada em que já considerava que «Hitler nos fascina mais do que Estaline», sem entendermos em que aspecto é que isso valorizaria ou desvalorizaria Fidel.

Mesmo admitindo que há gostos para tudo, talvez as pessoas, sobretudo as que são boas em certos meios, devessem fugir daqueles outros meios que só revelam o seu lado pior.

quarta-feira, 23 de novembro de 2016

AQUILINO RIBEIRO: A CASA GRANDE DE ROMARIGÃES



Os clássicos portugueses não são lidos. Porventura Eça e Saramago porque eram - ou foram até há pouco... - obrigatórios no ensino secundário (e ainda há quem se atreva a considerar que a "obrigatoriedade" afugenta...); talvez agora Camilo, novamente.
Mas de todos os que não são lidos, alguns há que não são lidos ainda com mais força, porque os tomam por particularmente chatos, ou seja, difíceis, indigestos, incompreensíveis. Já nem me refiro a Herculano. Mas a Aquilino Ribeiro, mas a Agustina.

Uma plêiade de intelectuais (designando-os deste modo, dir-se-ia que ironizo, mas são pessoas que estimo) foi chamada a escolher as 12 melhores obras da literatura portuguesa dos últimos 100 anos. Uma delas seria, na óptica de todos os jurados, A Casa Grande de Romarigães. E tanto me bastou para caçar e reler a minha velha - e quase esquecida - edição.

Consta que Salazar afirmava que, sim senhor, Aquilino Ribeiro seria um homem da oposição. Mas, caramba! como escrevia bem. "Escrever bem" significa, neste caso, procurar uma linguagem própria, originalíssima, em cuja génese se cruzam o português mais culto e recalcado e um português popular, pejado de regionalismos. É assombroso: caminhamos pelo texto com o vagar de quem dá passos sobre uma lâmina fina de gelo, ou como quem se aventura na compreensão de uma língua estudada, conhecida, mas pouco familiar. Na verdade, não faz falta um glossário: à medida que penetramos no sentido e ganhamos segurança, as frases mais rebuscadas devêm de uma clareza perfeita, luminosa. Sob a aparente obscuridade abrem-se cursos frescos, e a experiência torna-se cada vez mais fonte de prazer. Lendo outras obras, mais fáceis, de outros autores - um policial, por exemplo - é de certa forma como se as lêssemos mecanicamente, enquanto, ao mesmo tempo, pensamos em assuntos diversos, devaneando para tornarmos a prestar atenção ao fim da frase, sem que o essencial nos haja escapado. Aqui não. A concentração deve ser total. O texto deixa que nos banhemos nele, bem entendido, mas não podemos dispersar-nos por um instante, nem atender o telefone ao mesmo tempo, nem seguir com um olho distraído e simultâneo os anúncios da televisão. Aquilino obriga a uma reaprendizagem da leitura: como Herculano ou Agustina, de resto.

A casa grande de Romarigães é o único nó. Assistimos ao modo como ela é erguida para habitação de «um licenciado», num campo luxuriante, campo esse cujo aparecimento (descrito com tão poética minúcia, e tanta beleza) por sua vez já constituíra o modelo do próprio romance de Aquilino Ribeiro: uma bolota aqui, outra ali, o trabalho sem propósito de uma ave, de outra ave, do vento, da chuva, do tempo, e eis por fim um arvoredo a perder de vista. Também este romance vai lançando sementes, umas breves, outras mais demoradas, que são as vidas de personagens de que nascem filhos que terão filhos; no início, o «licenciado», um padre, procriou: mal nos precavemos e já estamos perante a floresta, isto é, uma família de que, geração após geração, se multiplicam histórias de amor e rivalidade com os vizinhos, trabalho, preguiça, desperdício, no chão comum que é a casa, único e sólido enraizamento de uma genealogia que se desenvolve nos séculos, e de que somos testemunhas.  

Ao longo de gerações sucessivas de proprietários, o que se nos vai contando é a História portuguesa desde o tempo da presença espanhola. A casa grande é Portugal, no sentido em que a ilustre casa de Ramires é Portugal, apresentando as escolhas de campo, as lutas fratricidas, as geniais cobardias, os desleixos e as perfeitas coragens, numa súmula de defeitos que não somos capazes de odiar (nem porventura corrigir) e de virtudes que não pululam em todos os povos.

quinta-feira, 3 de novembro de 2016

GEORG LUCÁKS: HISTÓRIA E CONSCIÊNCIA DE CLASSE




                                          «Willi - Pois sim, talvez sejam crimes, não sabemos nada disso. O nosso dever é o de confiar, com os olhos fechados, porque não nos cabe fazer outra coisa, nem a si nem a mim. Acusar, protestar, nunca é mais do que servir o inimigo. Prefiro ser fuzilado por engano. Nem os crimes nem os enganos alteram o nosso dever
                                                   
                                                                                Victor Serge, O Caso Tulaev


A última frase do meu mais recente post, neste blogue, recordou-me a influência que Lukács tivera na direcção do meu pensar.

Resumamos o processo. No início dos tempos, reconheci-me anti-marxista. Identificando o marxismo com o fundamento teórico do país nascente em que eu então vivia, vi naquele o responsável por um regime que cortava a direito e, em nome da classe, ou do povo, se tornava frequentemente insensível e obtuso.

Foi, paradoxalmente, retornando, ou seja, regressando a Portugal, que principiei a ler verdadeiramente textos de Marx e de Lenine; a minha juventude portuguesa tornou-me, pois, marxista: o Manifesto Comunista soou-me bem, os Escritos Económico-filosóficos ainda melhor. Na senda desta paradoxal recém-conversão ("paradoxal" se recordarmos que eu começara por experimentar o marxismo na pele, na prática, e dele me escapulira) li Trotski, Rosa Luxemburgo e Lucáks.

História e Consciência de Classe foi uma revelação. Sob o jargão típico, as formulações clássicas do marxismo, que me arrepiavam ainda, apesar de tudo, e a que Lucáks não fugia, intuí todavia uma força maior, um movimento intelectual poderoso, uma reflexão que rompia as cordas de um pensamento unidimensional. Então, ainda me não familiarizara com a filosofia de Hegel, e portanto não possuía instrumentos para apreender o idealismo hegeliano como a corrente que subterraneamente informava o pensar de Lucáks.

Esta obra seria a minha porta para a descoberta, mais tarde, de Lucien Goldmann e da sua óptica marxista e estruturalista sobre os romances: aí dava-se-me a ver como a "mentalidade" das personagens (sem que, por isso, estas perdessem uma individualidade complexa e contraditória) representa, apesar da esperável refracção, uma posição de classe: pelo que um romance permite sempre a leitura das diferentes forças sociais na sua relação, na sua ascensão, na sua hegemonia, na sua decadência; seria, pois, o recorte de uma história das mentalidades, e esta, por sua vez, a tentativa de compreender como a visão de cada indivíduo é a expressão, na sociedade, da classe em que ele se forma; em suma: os interesses individuais como a cristalização no particular de interesses de classe. Este estruturalismo, antes de se transformar numa chave redutora - e transforma-se sempre numa chave redutora: já era a tese que apresentava no anterior post -  começa por ser um instrumento de leitura com a sua riqueza e as suas virtualidades.

Entretanto, tive conhecimento das dificuldades de Lucáks perante a consolidação do estalinismo. A crítica que o próprio fez do seu História e Consciência de Classe como obra idealista. (O que é objectivamente correcto, mas não tem de se tratar como um erro). A aceitação de lugares que implicavam a crítica de desvios de escritores e intelectuais, muitos dos quais acabaram presos e liquidados.

A pergunta, que tanto se dirigiria a Lucáks como a toda uma elite de pensadores marxistas de um quilate superior, é sempre a mesma. Porque calaram as suas vozes maduras e informadas? Porque recuaram relativamente ao próprio pensamento, que era mais profundo e promissor do que o dos líderes que eles serviam? A resposta nunca poderia ser: falta de coragem. Basta ler-se O Caso Tulaev, de Victor Serge, ou O Zero e o Infinito, de Koestler, para se compreender o dilema dessas almas torturadas, esses intelectuais para quem Estaline e a URSS, por injustos que se mostrassem em certos aspectos ou em dado momento histórico, continuavam, no essencial, sendo vistos como a força e o movimento correctos da História, do progresso e da libertação dos oprimidos; não poderiam ser criticados sem se estar a trair o proletariado e a dar cartas aos inimigos da revolução. Esta é a tragédia. A tragédia sofrida no cerne das suas consciências. A causa da ambiguidade. De silêncios cúmplices. De auto-críticas incompreensíveis. Aterrador.

segunda-feira, 31 de outubro de 2016

E.M. FORSTER: HOWARDS END


                                                                                                         

                                                                                        «Ligar, apenas...»




O romance abre com a apresentação de algumas cartas de Helen, que se encontra por algum tempo em Howards End, destinadas a sua irmã, Margaret. É um exemplo feliz de concisão dramática. Na economia da forma epistolar se faz a descrição da casa em que Helen é hóspede dos Wilcox; uma referência superficial a estes; e se adverte a destinatária, na última delas, bruscamente e sem explicações, de uma paixão: Helen apaixonara-se pelo jovem Wilcox, acabado de chegar.

O capítulo II mantém a sugestão da surpreendente paixão. O diálogo entre Margaret e a tia sobre o que fazer (ignorando que, com a mesma rapidez com que tivera início, a paixão já findara) é um elemento magistral na informação ao leitor; na revelação destas duas personagens; do choque amistoso e preocupado entre os caracteres; mas, principalmente, na arte de nos cativar e introduzir no seu mundo - trata-se, aliás, de um mundo que estremece perante os atractivos de um outro mundo, o dos Wilcox, evidentemente, e da sua peculiar mansão. Sentimos a respiração da intriga sobre o nosso pescoço. A tia parte para socorrer a jovem Helen, sem saber de um telegrama, que entretanto chegava, anunciando o fim do amor e a inutilidade do socorro da tia Juley.

O capítulo seguinte é ainda extraordinário (e delicioso) por causa do bailado de equívocos suscitados pelo inesperado encontro da tia, na estação, com o irmão mais velho do jovem apaixonado entrementes desapaixonado.

Não senhor: a ideia não é apresentar-vos uma leitura capítulo a capítulo; usei esta sequência para mostrar como, artística mas também tecnicamente, Howards End é um romance modelar.

Há uma ironia muito britânica no filtro através de que se descreve cada personagem; o reconhecimento do elemento ridículo, que é, ao mesmo tempo, a detecção de uma vulnerável inocência. Enternece-me esta passagem:

« - Desculpe - disse o jovem ao lado de Margaret, que há um bom bocado preparava uma frase -, mas essa senhora levou, inadvertidamente, o meu guarda-chuva.
- Oh meu Deus! Peço imensa desculpa [...]
- Não tem importância nenhuma - disse o jovem, na realidade muito preocupado com o seu guarda-chuva.» 

E mais adiante, quando começamos a compreender melhor a sua obsessão: 

«Oh, adquirir cultura! Oh, pronunciar correctamente os nomes estrangeiros! Oh, estar bem informado, discorrer com facilidade sobre cada assunto aflorado por uma senhora! Mas seriam precisos anos. [...] O seu cérebro podia estar repleto de nomes, podia até ter ouvido falar de Monet e Debussy; o problema estava em que não conseguia reuni-los numa frase, não sabia como "fazê-los falar", não conseguia esquecer totalmente o guarda-chuva roubado. [...] "Espero que o meu guarda-chuva esteja a salvo", pensava. "Na verdade, isso não me interessa. Vou concentrar-me na música. Espero que o meu guarda-chuva esteja a salvo."»

Este jovem, «subalimentado, tanto física como espiritualmente», que tão espantosamente nos recorda o «auto-didacta», de La Nausée, é uma peça essencial: o que ele inveja nas irmãs Schlegel é precisamente o tu-cá-tu-lá com uma sofisticação espiritual em que parecem já ter nascido. Helen e Margaret são fruidoras de Arte: sabem apreciar o que escutam, sem ter de pensar no guarda-chuva ou no que vão comer. Têm ideias fortes. Discutem-nas, semeando a sua tagarelice de ângulos filosóficos, paradoxos, cinismos requintados.
O que fazer com este rapaz e as suas aspirações? Como ajudá-lo a evoluir (sem o diminuir, e sem, até, que ele se aperceba)? É perante esta pergunta, por um lado, e, por outro lado, perante esta: que fazer de Howards End, agora que a sua figura tutelar, Mrs. Wilcox, já não pertence a este mundo?, é perante estas duas perguntas, escrevia eu, estes dois motes, que tornam a cruzar-se, anos volvidos, as meninas Schlegel e a família Wilcox, ainda proprietária da mansão.

Porque se quer auxiliar o auto-didacta cândido, e preservar o espírito de Howards End? Temo que a primeira tentação seja a de nos entregarmos a uma leitura política sobre a Inglaterra e as suas classes sociais. É, sem dúvida, uma chave, a que aliás, numa breve introdução, João Guardado Moreira, o tradutor - excelente - oferece o devido relevo; mas se uma chave de leitura evidencia aspectos que, sem ela, permaneceriam por descobrir, tenhamos cuidado com os que, em contrapartida, remete para a sombra.

Parece-me mais interessante - mas, a limite, igualmente redutor - o combate surdo entre a atitude intelectual e a atitude prática, os poetas, se quisermos, e os empreendedores, ou uma riqueza idealista, romântica e sonhadora [a das meninas Schlegel] e uma riqueza de pés bem assentes no chão, sem aura nem filosofia [a de Mister Wilcox, a da família Wilcox]; ou, e esta é a mais promissora das hipóteses, entre os espíritos que tudo ligam numa vasta dispersão, e aqueles que se concentram; é entre estes dois planetas que só podem atrair-se para, eventualmente, colidir, que perpassa Mr. Bast, o auto-didacta, com as suas citações despropositadas, as suas referências mal digeridas e uma desconfiança à flor da pele.

Estas personagens, na sua diversificação social e cultural, e de objectivos e de expectativas, genialmente captados e reconstituídos no romance, propiciam uma sucessão de encontros, mas sobretudo desencontros, equívocos, erros e escolhas, em que lemos também as razões íntimas, singulares, do apogeu e declínio do Império Britânico. Esse poder sempre me impressionou, num romancista: revelar na história particular de um microcosmo, a realidade de toda uma época, uma sociedade, um império.

segunda-feira, 3 de outubro de 2016

VERGÍLIO FERREIRA: APARIÇÃO


Relendo este maravilhoso romance que encontrei, na minha estante, numa bem conservada edição da Bertrand, de 2000, deixo que as páginas me vão devolvendo as personagens - Alberto, o narrador, professor de liceu, a misteriosa Sofia, Ana, Cristina, todas filhas do Dr. Moura, Alfredo, Chico, o Bexiguinha - que, convivendo, dando-se, relacionando-se, em espaços ritualizados, como a casa da família, a pensão do sr. Machado, o liceu, os cafés, a praça, Évora, enfim, estão sempre em face da possibilidade de uma revelação: esse elemento que escapa a todos os rituais, que escapa ao empedernido das relações, e das frases feitas, dos gestos feitos, que escapa à rede de hábitos em que nos instalamos, como se neles pudéssemos descobrir-nos e tocar-nos, a nós e aos outros, sem espanto nem mistério.

É, pois, o tema caro ao existencialismo, que Vergílio Ferreira tão bem reinventou em português, para irritação dos neo-realistas, que nunca lhe perdoaram as incursões metafísicas: este surpreender de um mistério dos homens, uma intimidade da pessoa, esta espécie de assombro perante o que, em cada um, se não reduz a nenhuma mecânica de forças ou energias, este reconhecimento de uma dimensão que é mais do que a matéria, esta ruptura com o mero determinismo, ora vista como uma ameaça, ora como uma redenção. Na obra de que falo, o espanto perante a evidência da plenitude que é um sujeito não remete para Deus nem para a fé na eternidade. Não há Deus, não há deuses. O único milagre é o estar vivo e sabê-lo. Melhor: é o estar vivo como uma centelha breve e frágil que habita o corpo. Não precisa sequer de lhe sobreviver. É imortal enquanto dura, e tanto lhe basta.

O terreno estava propício para a sementeira. VF é uma síntese de Eça de Queirós e de Fernando Pessoa, na linguagem, na perspicácia, na ironia, na reflexão. Proust ou Sartre, claro, são correntes que aprofundam e enriquecem a síntese, mas Eça de Queirós, por um lado, já fornecera a forma de observação das figuras prosaicas, superficiais e ridículas - Dâmaso ou Acácio são, se repararmos bem, os modelos de um Alfredo, e Eusebiozinho o de um Bexiguinha -, na sua caricatura a traço grosso [não por inépcia do autor, evidentemente, mas porque se trata mesmo de dar a ver uma grosseria lusa], nas falas em que detectamos a graciosidade e a subtileza de chouriços: ainda que Bexiguinha seja algo mais, as aspirações, que revela, ao voo filosófico tropeçam sempre na sua voz de falsete, na entoação alentejana, nas próprias visões toscas; Pessoa, por outro lado, ou Álvaro de Campos, já fornecera a forma de expressão tão linda, as possibilidades da escrita, poética, surpreendente, e a reflexão sobre o que se adivinha para além do mundo prático, como uma angustiante melodia, uma carência de infinito, uma saudade do futuro.   

Ver em Vergílio Ferreira a síntese de Eça de Queirós e de Fernando Pessoa, ver em Aparição uma lusa Nausée - porém mais iluminada, intuindo uma plenitude e um sentido que em La Nausée estão ausentes - é um elogio justo. Vergílio Ferreira, caído praticamente no esquecimento, é um dos pontos altos da literatura portuguesa.

  

sexta-feira, 23 de setembro de 2016

GRAHAM GREENE: O FIM DA AVENTURA


Numa das suas crónicas, sempre inteligentes e desencantadas, João Pereira Coutinho dava exemplos de figuras e situações romanescas de que a nossa prosaica realidade nunca poderá aproximar-se: o uísque (ou seria o gim?) na minha mão não tem o sabor que adivinhamos num certo romance, o pôr-de-sol diante dos meus olhos não é igual ao que li, um amor real não terá a espessura do amor de Bendrix por Sarah. Aliás, porque perco tempo explicando, quando posso remeter directamente para uma citação que, em tempos, aqui fiz dessa crónica?

Estes nomes, que eu não conhecia ainda, penetraram-me no cérebro e nos sonhos. Bendrix e Sarah. Pesquisei metodicamente, até descobrir que são as duas personagens principais de um romance de Greene, The End of the Affair, que na elegante tradução de Jorge de Sena se verteu para O Fim da Aventura.

Este romance, muito mais do que uma história sobre um amor infeliz, é um
comovente tratado do ciúme. As considerações de Maurice Bendrix, o narrador, sobretudo quando rememora o início, o apogeu e o fim do seu caso amoroso, aproximam-no do Swann, de Proust: Bendrix é, também, o apaixonado inquieto e obcecado, que não consegue conter as perguntas que o assolam, e na franqueza de Sarah detecta sempre o desinteresse e a distância. O homem que adivinha as inúmeras possibilidades a partir de um trejeito, uma mudança de entoação, que sofre porque nada do que vê e ouve em Sarah pode ser inocente. A interpretação do seu menor gesto contém torturas que só outro ciumento poderia imaginar.

O detective contratado por Bendrix para vigiar Sarah - anos volvidos sobre o fim da aventura - é um exemplo muito conseguido de um carácter de tragicomédia, como os que os melhores autores ingleses tão bem compreenderam  e cunharam - vejam Dickens, Somerset Maugham e o próprio Graham Greene. Parkis e seu filho, o adolescente a quem ele ensina a profissão, é um homem meticuloso e humano, que se apega às pessoas cujos passos segue, ridículo, cândido mas inesperadamente profundo. E todos, Bendrix e Sarah, Henry, o marido traído, Parkis e seu filho, o pregador ateu, o padre católico, se movem num mundo sem luz, onde Deus envia sinais que podem não ser sinais: nada mais do que coincidências em que desejamos crer.

Em que desejamos crer ou em que desejamos não crer. Para Bendrix não se trata tanto de duvidar da Sua existência, como de não poder perdoar-Lhe. Deus como Inimigo. Deus como o Pai Injusto e Tremendíssimo, que exige sacrifícios e oferendas preciosas a troco de um pouco de Paz. Que exige o sacrifício do amor - porventura o amor pecaminoso e errado, mas o único que importa e nos resgataria, e dá sentido à vida. Bendrix é o oposto de Job. É a criatura que não aceita e combate, é quase Lúcifer e, como Lúcifer, o que o faz correr é mais da ordem da amargura e do desespero do que verdadeiramente da ordem do Mal.  

sábado, 17 de setembro de 2016

MÁRIO DE CARVALHO: QUEM DISSER O CONTRÁRIO É PORQUE TEM RAZÃO



A «escrita criativa» tem sido, nos últimos anos, objecto de workshops, se não mesmo cursos universitários, ou livros, como se fosse possível ensinar alguém a ser criativo ou a escrever criativamente. Habituados, como estamos, a obras, mais ou menos extensas, carregadas com conselhos, regras e exercícios para fabricar escritores de ficção, arriscamo-nos a tratar equivocadamente este Quem Disser o Contrário é porque tem Razão, de Mário de Carvalho.

A frustração pareceria justificar-se. Aparentemente, o livro nada ensina. Na verdade, ensina de uma forma cada vez menos usual, semeando e revelando possibilidades, pensando ou ajudando a pensar através delas. O seu propósito é, pois, infinitamente superior ao de um mero guia prático. Aliás, «Quem disser o contrário é porque tem razão» significa precisamente que não existem nem devemos esperar, em literatura, regras positivas, definitivas, que não surjam a partir do que os autores foram experimentando, ou cuja transgressão, em vários casos, não tenha permitido produzir autênticas obras-primas. Ou seja, o domínio é vasto, riquíssimo e prima por chaves e soluções opostas, mas todas elas interessantes - e «correctas» precisamente porque possíveis.

Isto dito, segue-se que o texto de Mário de Carvalho pretende ser - e é - uma reflexão profunda e muitíssimo estimulante sobre a escrita do romance. Trata-se, principalmente, de uma caminhada por dentro de livros, muitos livros, onde desde a Odisseia, a Ilíada, as tragédias gregas, recorrendo amiúde à indispensável Poética de Aristóteles - após a qual nada de muito significativo foi acrescentado - até aos maravilhosos romances de todos os tempos, se descobre no concreto das obras, e se pensa sobre o concreto, como construir um livro.

Ficam na memória - entre muitos - os notáveis exemplos sobre como, em obras maiores portuguesas, se inicia uma história, ou se desenha uma personagem, ou procura uma perspectiva. Em O Hóspede de Job, de José Cardoso Pires, vemos, numa cena de arranque, um grupo de homens jogando às cartas, numa taberna [uma venda], enquanto, nas suas costas, dois recrutas amedrontados e um cabo bêbado se deixam adivinhar. Não há diálogo, mas o narrador consegue a proeza de deixar que a sua voz vá encarnando as diferentes perspectivas do grupo de jogadores, ao longo do jogo, como numa conversa muda, entrecortada pelas cartadas e pelos disparates do cabo e o temor, quase palpável, dos soldados. No Primo Basílio, Juliana é a mulher de que nos apiedamos ou que odiamos, sucessiva ou simultaneamente, cuja maldade quase conseguimos compreender, sem nunca resolvermos a repulsa que nos move perante a personagem.

A erudição de Mário de Carvalho é imensa, a sua linguagem sempre um deleite, o exercício de contrapor e mostrar que as alternativas nunca são exclusivas e que as tentativas contrárias podem ser igualmente bem-sucedidas é, em si mesmo, fascinante.

O paradoxo que a este pseudo-Guia prático subjaz, merece, contudo, que nele nos detenhamos por um momento: o que mais, mais profunda e mais duradouramente nos ensina é, muitas vezes, aquilo com que não nos apercebemos de estar aprendendo.

terça-feira, 13 de setembro de 2016

RADUAN NASSAR: LAVOURA ARCAICA


Mantenho, há provavelmente 2 ou 3 séculos, uma discussão com o meu amigo Jorge, acerca da ficção contemporânea em língua portuguesa. Defende o Jorge que os escritores portugueses, mesmo os melhores, a magnífica geração a que pertencem os Gonçalo M. Tavares e os Valter Hugo Mãe (Tordo seria a evidente excepção) revelam uma penosa incapacidade narrativa. A essência do seu trabalho residiria, é o Jorge a falar, na língua, como se, para eles, "ficção" fosse apenas um dos heterónimos da poesia. Nada de história, nada de propriamente narração, vagas personagens, vagos pensamentos em vagas situações.

Vem a propósito mencionar Raduan Nassar, autor de uma obra que dá na vista por ser tão escassa, vencedor do Prémio Camões 2016 precisamente mercê da força revelada pela sua «prosa poética», o que, segundo o meu amigo, consolidaria essa tendência para o apreço que as elites portuguesas dedicam, em relação à ficção portuguesa [ou à ficção em português...] ao cultivar da linguagem em detrimento do acto de narrar.

É uma discussão interessante. Continuo a pensar que há lugar para todas as formas, e que a qualidade independe completamente da opção por aquilo que se prefere saborear. Se Raduan Nassar é excelente pela inventividade da sua expressão [ou Gonçalo M. Tavares e Valter Hugo Mãe], já João Tordo ou Hugo Gonçalves são exímios na forma de contar histórias: uns lêem-se mais demoradamente, regressando-se vezes sem conta a passagens anteriores, para as usufruirmos com toda a paciência exigida, outros lêem-se em estado de sobressalto e de impaciência, para vermos resolver-se um suspense insuportável. Todos são maravilhosos.

Nassar, de facto, é um decantador prodigioso da língua, e um encantador. O tom e a temática bíblicos reformulam as premissas que conhecíamos. Aqui, o filho pródigo é, de certa forma, Caim, e o seu retorno ao Lar, mais do que um momento de reconciliação familiar, será a assunção da paixão pecaminosa, a declaração de Guerra conta a Palavra estabelecida e contra a Razão do Pai. Senhores! Ao lado disto, as diatribes de Saramago contra os evangelhos parecem de uma cómica candura. Nesta novela - refiro-me particularmente a Lavoura Arcaica, mas Um Copo de Cólera é também de uma coragem impudica - somos obrigados a mergulhar no terreno bravio dos tabus. Lemo-lo com incómodo. A linguagem mascara, não apenas embeleza. Sei: «Mascara» soa forte; mas há, com efeito, uma estratégia de enevoamento, a criação de uma espécie de neblina, sob a qual o leitor se sente um pouco incerto, e se pergunta: será que estou a interpretar bem? será que sucede mesmo o que me parece? estamos perante este acto de transgressão, e estoutro, e aquele?

A beleza do texto nada perde por por causa dessa hesitação das linhas, esse astigmatismo na exposição. Pelo contrário. O seu efeito estético é extraordinário. Como se sob a delícia das palavras se ocultassem sempre serpentes - não tanto "tentadoras", mas "reveladoras" de uma verdade inesperada e crua, dolorosa e transgressora.


terça-feira, 30 de agosto de 2016

AUDREY NIFFENEGGER: A MULHER DO VIAJANTE NO TEMPO



Principiemos, pois, pelo título, que me parece soberbo, mesmo admitindo que afugentaria de antemão as pessoas que odeiam ficção científica, e tomando também em consideração que alguém o possa considerar demasiado revelador. Em relação ao primeiro ponto, nada posso contrapor; em relação ao segundo, discordo: não é demasiado revelador. Revela apenas, isso sim, um tema que é, ele próprio, um achado. Apercebemo-nos do elemento trágico nele contido. O romance não é sobre um viajante no tempo, mas so-
bre a sua mulher - que não é uma viajante. O título sugere uma dissintonia entre os protagonistas. Também permite captarmos o que há de terrível nessa dissintonia: nada a propósito de que se possa gerar um acordo ou um consenso; nada que tenha a ver com a dissensão temporal sob a forma do conflito de gerações, por exemplo. Mas o tempo como o que distancia e separa irremediavelmente.

É um livro enorme - 480 páginas, na edição da Presença de 2004 que, infelizmente, foi «descontinuada»: porquê? que sucedeu?

Encomendei-o, seguindo uma pista de Remédios Literários. E o que tenho entre mãos, A Mulher do Viajante no Tempo, trata-se, espantosamente, do primeiro romance da autora; foi distinguido com o British Book Award 2006. Uma estreia, diria, cujo esplendor jamais se repetirá, porque dificilmente o destino concederia a Audrey Niffenegger a graça de encontrar o prodigioso cruzamento entre um título, um tema e uma estrutura roçando a tal ponto a perfeição.

No seu primeiro encontro, numa Biblioteca, a Newberry Library, Clare Abshire tem 20 anos e Henry DeTamble 28. Clare sabe quem ele é; conhece-o desde os seus 6, todavia Henry, que só viajará até à infância de Clare muitos anos após este primeiro encontro na Biblioteca, ainda a não conhece, não sabe quem ela é ou, sequer, que há-de casar com ela.

A Mulher do Viajante no Tempo é um romance cujo enquadramento cultural e literário, mais do que o puro pedantismo de uma escritora novata, tem como função elaborar uma rede de referências que formam uma outra espessura à história. Citar Homero, Pristley, Emily Dickinson ou Rainer Maria Rilke permite conceber, aqui, o tempo, na sua mais profunda qualidade literária, filosófica e metafórica; nem isso seria necessário para que nos não incomode a ausência de uma explicação científica - como, e por que razão da Física, este homem viaja no tempo? Sabemos que é uma condição e sabemos que há outras pessoas que sofrem dessa condição: cronodeficiência. Henry DeTamble não escolhe viajar. Acontece-lhe. Não prevê senão aprendendo a reconhecer alguns sinais. Não pedimos mais explicações porque, em si mesma, independentemente dos pormenores, a trama está muito bem concebida e não nos interrogamos sobre a sua credibilidade. Mas num nível crítico e reflexivo da leitura, compreendemos que o tempo é, neste caso, a experiência da nossa própria condição existencial, na relação trágica com os demais. O tempo comum, colectivo, é, em certa medida, uma ilusão. Cada um de nós vive encapsulado no seu tempo subjectivo, de que fazem parte as memórias e os projectos. E cada um dos outros «nossos», familiares ou amigos, é sempre - também em certa medida - alguém com quem combinamos pontos de encontro e reencontro. Ancoradouros na viagem. Mas ninguém me acompanha na minha própria viagem.