sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

BALZAC: O TIO GORIOT


A universalidade de uma obra não se funda certamente em que ela haja sido criada fora do tempo e da história, no seio de uma espécie de mundo inteligível, não sujeito à mudança nem à corrupção. Deve-se a que um autor genial, influenciado pelo seu meio e pela sua época, até pelos tiques da moda, tenha conseguido usá-los como meios para produzir o que se não esgota nestes, mas os supera, e permanecerá para além deles.

Veja-se Balzac. Analisemos a sua escrita. É um modo de escrever «datado». Hoje, que o cuidado descritivo parece ter perdido o valor, que os jovens o repudiam e todos nós dele nos fomos desabituando, hélas!, ler um romance como O Tio Goriot significa, antes de mais, e desde as primeiras páginas, submergir num preciosismo da descrição, uma tessitura requintada, que tenta dar a ver à imaginação do leitor a pensão da senhora Vauquer, geograficamente, situando-a com pormenor na «Rua Neuve-Sainte-Geneviève», entre «o Bairro Latino e o Bairro Saint Marceau», ou económica, social, arquitectónica esteticamente, apresentando-a na sua degradação, no seu isolamento, na sua pouca limpeza, nas suas cores, nos seus cheiros, no cafarnaum de móveis, cortinados e bibelôs que a preenchem. Mas não ficamos por aqui. Ainda nada sucedeu diante dos nossos olhos, e são expostos os retratos psicológicos dos diversos ocupantes dos vários quartos da pensão. O papel e o estatuto sociais de cada um, traduzidos, em última análise, no tipo de quarto em que se instala e na renda estipulada.

Pode parecer vão e entediante, se não estivermos atentos ao facto de como, nesta descrição detalhada e exaustiva, se ilustra um microcosmo no interior de um cosmos que é a cidade de Paris do século XIX. O que faz a universalidade da obra de Balzac é, pois, primeiramente a forma como se capta a realidade de certa época segundo a visão de um artista que é, simultaneamente, um historiador, um sociólogo, um psicólogo, um economista e um filósofo; e, por outro lado, o modo como, apreendendo multifacetadamente esse mundo multifacetado, se compreende o pathos humano no que este pode revelar de melhor e de pior. Só em I Promessi Sposi, de Manzoni, encontrei nos últimos anos esse poder para descrever um tempo transcendendo-o para alcançar na sua pureza a experiência mais autêntica e intemporal do amor, da cobardia, da generosidade e da mesquinhez.

Não é despiciendo que, para além de todos os conhecimentos de que Balzac se dota para escrever a sua obra, se mostre ainda tão perspicaz ao intuir a etiqueta na forma como as damas da aristocracia parisiense recebem: refiro-me a um conjunto de regras latentes, que só um fino observador detecta como reguladoras das suas conversas. Um exemplo: Rastignac, jovem estudante arrivista, obcecado por penetrar no perímetro da Alta Sociedade, vai visitar uma viscondessa, ligada a si por um vago e remoto galho da árvore genealógica, com o fito de que ela o esclareça [o jovem acabara de cometer, noutro lugar, uma gafe que nem sequer o próprio compreendera muito bem], e, sobretudo, o guiasse na desejada e penosa ascensão; enquanto se apresentam, é anunciada outra dama: uma duquesa. Esta entra. Afáveis, corteses uma com a outra, como se fizessem dele a testemunha de uma antiga amizade. O leitor, a par de antecedentes que o jovem desconhece, apercebe-se imediatamente da duplicidade hipócrita do diálogo que se trava entre elas; entende como, sob a aparência de uma inocente e agradável troca de palavras, as duas mulheres se alfinetam perfidamente. Oferecem-se mútuas informações que poderiam passar por mera fofoca, se não soubéssemos que ambas estão conscientes de que o conhecimento que ali partilham se destina a magoar a outra. A maneira, contudo, como procedem, segundo um ritual bem treinado e consolidado, de limites perfeitamente estabelecidos, onde nunca se perde a compostura, e se utiliza o rosto do elogio para mascarar as intenções mais viperinas, é toda uma arte - em que Eugénio de Rastignac terá de se educar.

Esta é a comédia humana, em que as diferentes pessoas vão revelando de si surpreendentes ângulos, consoante o lugar que o engenho e a sorte lhes oferecem. Rastignac ou Goriot não são absolutamente maus nem absolutamente bons. O mais íntimo deles, ora vil, ora ingénuo, ora de uma inesperada grandeza, vai sendo exposto, em função de condições aleatórias mais do que propriamente de estratégias decididas. Embora algumas personagens planeiem a vida. A carta que Rastignac escreve à mãe e às irmãs, chorando por dinheiro, que sabe que só com sacrifício reunirão, é abjecta. As lágrimas e os remorsos com que lê a resposta não deixam de nos tocar. Goriot, que pagava inicialmente «mil e duzentos francos de pensão», que se «munira de um guarda-roupa bem fornecido, um magnífico enxoval de negociante que não se priva de coisa nenhuma ao retirar-se do comércio», com a «sua pesada corrente de ouro guarnecida de berloques» ou a sua «tabaqueira de ouro», foi-se transformando, por amor das filhas que o desprezam, num homem sem nada, enxovalhado por todos, triste e soturno. Herói e anti-herói, sublime e miserável, arrastado para a situação trágica que os demais lêem como cómica, foi sempre, no fundo, um simplório, um medíocre - embora o seu coração albergasse dois sentimentos sublimes: pela esposa, de que enviuvou, e pelas filhas. É por tudo isto que a obra de Balzac é universal: no concreto de cada indivíduo e da sua circunstância, aprendemos a ler o próprio Homem.

 

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