terça-feira, 13 de setembro de 2016

RADUAN NASSAR: LAVOURA ARCAICA


Mantenho, há provavelmente 2 ou 3 séculos, uma discussão com o meu amigo Jorge, acerca da ficção contemporânea em língua portuguesa. Defende o Jorge que os escritores portugueses, mesmo os melhores, a magnífica geração a que pertencem os Gonçalo M. Tavares e os Valter Hugo Mãe (Tordo seria a evidente excepção) revelam uma penosa incapacidade narrativa. A essência do seu trabalho residiria, é o Jorge a falar, na língua, como se, para eles, "ficção" fosse apenas um dos heterónimos da poesia. Nada de história, nada de propriamente narração, vagas personagens, vagos pensamentos em vagas situações.

Vem a propósito mencionar Raduan Nassar, autor de uma obra que dá na vista por ser tão escassa, vencedor do Prémio Camões 2016 precisamente mercê da força revelada pela sua «prosa poética», o que, segundo o meu amigo, consolidaria essa tendência para o apreço que as elites portuguesas dedicam, em relação à ficção portuguesa [ou à ficção em português...] ao cultivar da linguagem em detrimento do acto de narrar.

É uma discussão interessante. Continuo a pensar que há lugar para todas as formas, e que a qualidade independe completamente da opção por aquilo que se prefere saborear. Se Raduan Nassar é excelente pela inventividade da sua expressão [ou Gonçalo M. Tavares e Valter Hugo Mãe], já João Tordo ou Hugo Gonçalves são exímios na forma de contar histórias: uns lêem-se mais demoradamente, regressando-se vezes sem conta a passagens anteriores, para as usufruirmos com toda a paciência exigida, outros lêem-se em estado de sobressalto e de impaciência, para vermos resolver-se um suspense insuportável. Todos são maravilhosos.

Nassar, de facto, é um decantador prodigioso da língua, e um encantador. O tom e a temática bíblicos reformulam as premissas que conhecíamos. Aqui, o filho pródigo é, de certa forma, Caim, e o seu retorno ao Lar, mais do que um momento de reconciliação familiar, será a assunção da paixão pecaminosa, a declaração de Guerra conta a Palavra estabelecida e contra a Razão do Pai. Senhores! Ao lado disto, as diatribes de Saramago contra os evangelhos parecem de uma cómica candura. Nesta novela - refiro-me particularmente a Lavoura Arcaica, mas Um Copo de Cólera é também de uma coragem impudica - somos obrigados a mergulhar no terreno bravio dos tabus. Lemo-lo com incómodo. A linguagem mascara, não apenas embeleza. Sei: «Mascara» soa forte; mas há, com efeito, uma estratégia de enevoamento, a criação de uma espécie de neblina, sob a qual o leitor se sente um pouco incerto, e se pergunta: será que estou a interpretar bem? será que sucede mesmo o que me parece? estamos perante este acto de transgressão, e estoutro, e aquele?

A beleza do texto nada perde por por causa dessa hesitação das linhas, esse astigmatismo na exposição. Pelo contrário. O seu efeito estético é extraordinário. Como se sob a delícia das palavras se ocultassem sempre serpentes - não tanto "tentadoras", mas "reveladoras" de uma verdade inesperada e crua, dolorosa e transgressora.


2 comentários:

sonia disse...

Já faz tanto tempo que li um dos dois livros de Nassar que não posso saber qual dele: só me lembro que me impressionou o fator que desencadeou uma briga entre o casal: um formigueiro encontrado numa cerca.

josépacheco disse...

Exactamente. É "Um Copo de Cólera". Por outro lado, soube entretanto que, de ambos, se fizeram filmes - o que parece contradizer o que eu escrevi sobre o défice de narratividade desses romances.