segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

ARTHUR MILLER: FOCUS


Hesito na confidência que não há-de abonar a meu favor: mas quando me falaram acerca de Focus, de Miller, parti imediatamente do princípio que se tratava de um romance da autoria de «Henry» Miller, o qual, ainda para mais, escreveu vários com títulos de idêntica terminação latina, como Nexus ou Sexus. Foi, portanto, já no momento em que o encomendava, que se desfez o ridículo equívoco - era Arthur Miller, que a minha ignorância não reconhecia senão como dramaturgo, o autor do célebre Morte de um Caixeiro Viajante.

É um romance que tem por tema a identidade. Como na obra de Pirandello, onde, frequentemente, um pormenor físico (por exemplo, o nariz que pende para o lado direito) é suficiente para transformar certa personagem e, transformando-a, alterar o modo como os demais a percepcionam, também o entrecho de Focus assenta no facto de Mr. Newman começar a usar uns óculos que, por alguma estranha e súbita razão, mudam não apenas a sua fisionomia, mas, digamos, a essência da sua fisionomia: Newman, que não é judeu, começa a ser visto como um judeu.


Este ensaio (chamemos-lhe assim, apesar de ser uma obra de ficção) sobre a identidade, e sobre o que faz uma identidade, ou acerca das características mínimas que configuram a maneira como nos olham, e como nós próprios passamos a olhar-nos, é brilhantemente conseguido. O romance vive de uma estrutura eficaz na forma como joga com os equívocos. Apreciem, por exemplo, o modo como o protagonista descobre que não terá, afinal, quaisquer possibilidades num emprego para que se candidatara, e cuja empresa ele acreditava, durante muito tempo confiante, que o chamaria.

 Newman, que, repito, não só não era judeu mas, acrescento, até um anti-semita - alimentando um anti-semitismo não violento, uma repelência visceral em relação ao "outro" - vai viver situações em que se tornou, ele, o alvo do desprezo, do desrespeito, do afastamento dos amigos e vizinhos, despromoção, despedimento.

À época, anterior à intervenção dos EUA na Grande Guerra, estamos perante uma América profundamente anti-semita, em que se assiste a uma "limpeza" dos bairros, e os vizinhos não-arianos se vêem insistentemente pressionados a mudar; onde, nos trabalhos de atendimento ao público, se faz questão de que não sejam visíveis pessoas de "aspecto judaizante"; onde pregadores e associações de cariz nazi atraem a si fanáticos unidos no ódio ao outro. Mas o que é o outro, o que faz do outro um outro, sendo os EUA uma nação que se criou e recriou integrando fluxos de novos imigrantes em busca de um sonho? O que faz do outro um outro num país que foi sempre um mosaico heterogéneo?

O romance falaria por si, sem proselitismo, sem explicações suplementares. A passagem escusada seria, pois, aquela, já nos derradeiros capítulos, em que o judeu do bairro argumenta com Mr. Newman, de forma a, indirectamente, se esclarecer o leitor sobre a lição a retirar. Espanta, até, que Miller, numa narrativa em que tudo funciona tão subtil e subliminarmente, tenha sentido necessidade dessa explicitação do seu ponto de vista. Mas o próprio facto de percebermos que esse episódio é inútil, mostra até que ponto Focus, mais do que o texto didáctico e político que, necessariamente, também é, importa e vale literariamente, como uma obra de arte maior.     


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