O tio Drosselmeyer, padrinho de Clara, é o relojoeiro com misteriosos poderes mágicos (um dos quais seria, parece, o de conceder vida aos brinquedos: oferece-lhe, aliás, o Quebra-nozes...), que surge não se sabe de onde, durante uma festa, transformando o tempo das crianças num momento exaltante, para desaparecer, sabe-se lá para onde, até porventura uma próxima festa.
É desta personagem de O Quebra-nozes que me lembro, quando meu primo, tão frequentemente referido no Profissão: Leitor [alguém me perguntava, outro dia, se um tal primo existe mesmo, ou é uma fantasia minha] quando meu primo, dizia eu, regressa de férias a Portugal , produz as suas maravilhosas operações de feitiçaria, e a seguir retoma as viagens para distantes paragens. As operações mágicas ganham, geralmente, a forma de conversas e de livros. Este Natal, recebi, dele, o Ruskin, traduzido e abundantemente comentado por Proust. Tem de ser magia. Mas não se ficou por aí: deleito-me agora, também graças a meu primo, com uma estranha biografia sobre um mui bizarro sujeito, de cuja vida e obra eu não tinha sequer o menor conhecimento. Frederick Rolfe, auto-designado Barão Corvo.
O livro é antigo. Pertencera a meu tio que, ao que descubro, o leu e sublinhou apaixonadamente. A.J.A. Symons, autor, faz nesta obra algo que me soa absolutamente original em matéria de biografia.
O início é este:
«A minha pesquisa sobre Corvo começou por acaso num verão, à tarde, em 1925, na companhia de Cristopher Millard. Estávamos preguiçosamente sentados no seu jardinzinho, falando acerca de livros que não conheceram a merecida recompensa no que respeita à apreciação e à influência. Mencionei Wylder's Hand, de Le Fanu, uma obra-prima de construção, e as Fábulas Fantásticas de Ambrose Pierce. Após uma pausa, sem comentar os meus exemplos, Millard perguntou: "Já leu Hadrian o Sétimo?"»
«O início é este», escrevi. O início, tanto da biografia, como na medida em que o episódio aqui relatado será o ponto de partida para a pesquisa que Symons empreenderia: Millard emprestou-lhe Hadrian VII e, na leitura desse romance o biógrafo descortina a intensa presença de Fr. Rolfe, escritor de um talento sublime, cujas personagens sentem, pensam, e falam com uma vivacidade impressionante. Como Cristopher Millard haveria de revelar mais tarde a Symons, a autenticidade dos caracteres do romance provém do facto de se basearem (brilhantemente, é certo) em pessoas de carne e osso, com as quais Rolfe terá convivido; o protagonista, George Arthur Rose, injustamente acusado, e expulso do seminário, impedido de se tornar sacerdote, é o próprio Rolfe. Com a reparação que, 20 anos depois, a igreja acabará fazendo da injustiça cometida contra a personagem George Rose [falamos de uma reparação ficcionada, portanto], acolhendo novamente no seu seio aquele que se tornará nada menos do que Papa [Adriano VII, precisamente] Rolfe imagina e regista a sua vingança contra todos os que o humilharam, perseguiram, acusaram e procuraram liquidar moralmente.
A originalidade reside, pois, em que ao invés de lermos linearmente a história de Rolfe, acompanhamos a averiguação a que o biógrafo se devota. Estamos, portanto, face a um «problema», apresentado desta maneira: quem é o homem de enorme talento, que se oculta sob pseudónimos e títulos diversos, um dos quais, o de Barão Corvo, poderá nem ser autêntico? Depois do problema, a busca de pistas para a investigação. Symons começa uma fervorosa troca epistolar com diversos indivíduos que terão privado com Rolfe, muitos como seus amigos, vários como seus inimigos, e que, quase todos, inspiraram, de uma forma óbvio, as personagens de Hadrian VII. Ora, que se obtém desta exaustiva e minuciosa correspondência? O vivíssimo retrato de um homem fascinante. Perguntei-me, algumas vezes, se não se trataria de uma peça de ficção travestida de biografia. Não. Qualquer rápida consulta do Google me garante o carácter real de Rolfe: homossexual sem quaisquer problemas em relação à sua homossexualidade (o que deveria ser raro numa época em que estes podiam ser condenados); de uma inquieta curiosidade, que o leva a dedicar-se à pintura, à fotografia, só mais tarde à escrita; inventor de engenhos, cuja concepção e planos acusa outras pessoas de lhe terem roubado; convertido ainda adolescente ao catolicismo; alimentando a obsessão de se tornar sacerdote, via essa que, efectivamente, lhe negaram; tendo vivido na mais terrível indigência; contraindo dívidas sobre dívidas, que justificaria com histórias mirabolantes e muito improváveis; sem amigos; caindo cada vez mais na paranóia de que o mundo inteira o incompreende e persegue; multiplicando cartas em que pede dinheiro - primeiro, muito dinheiro, alegadamente para investir em projectos, finalmente quantias como 5 £, para comer; insistindo sempre no seu estatuto de Barão, Frederick Rolfe é a figura extrema do charlatão genial. Ou do louco incapaz de distinguir entre fantasia e realidade. Ou de um exímio fabricante de embustes, para quem a mentira é, afinal, uma forma superior de Arte. Um autor maldito. Um autor bendito.
Conseguirei encontrar Hadrian VII?
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