segunda-feira, 3 de outubro de 2016

VERGÍLIO FERREIRA: APARIÇÃO


Relendo este maravilhoso romance que encontrei, na minha estante, numa bem conservada edição da Bertrand, de 2000, deixo que as páginas me vão devolvendo as personagens - Alberto, o narrador, professor de liceu, a misteriosa Sofia, Ana, Cristina, todas filhas do Dr. Moura, Alfredo, Chico, o Bexiguinha - que, convivendo, dando-se, relacionando-se, em espaços ritualizados, como a casa da família, a pensão do sr. Machado, o liceu, os cafés, a praça, Évora, enfim, estão sempre em face da possibilidade de uma revelação: esse elemento que escapa a todos os rituais, que escapa ao empedernido das relações, e das frases feitas, dos gestos feitos, que escapa à rede de hábitos em que nos instalamos, como se neles pudéssemos descobrir-nos e tocar-nos, a nós e aos outros, sem espanto nem mistério.

É, pois, o tema caro ao existencialismo, que Vergílio Ferreira tão bem reinventou em português, para irritação dos neo-realistas, que nunca lhe perdoaram as incursões metafísicas: este surpreender de um mistério dos homens, uma intimidade da pessoa, esta espécie de assombro perante o que, em cada um, se não reduz a nenhuma mecânica de forças ou energias, este reconhecimento de uma dimensão que é mais do que a matéria, esta ruptura com o mero determinismo, ora vista como uma ameaça, ora como uma redenção. Na obra de que falo, o espanto perante a evidência da plenitude que é um sujeito não remete para Deus nem para a fé na eternidade. Não há Deus, não há deuses. O único milagre é o estar vivo e sabê-lo. Melhor: é o estar vivo como uma centelha breve e frágil que habita o corpo. Não precisa sequer de lhe sobreviver. É imortal enquanto dura, e tanto lhe basta.

O terreno estava propício para a sementeira. VF é uma síntese de Eça de Queirós e de Fernando Pessoa, na linguagem, na perspicácia, na ironia, na reflexão. Proust ou Sartre, claro, são correntes que aprofundam e enriquecem a síntese, mas Eça de Queirós, por um lado, já fornecera a forma de observação das figuras prosaicas, superficiais e ridículas - Dâmaso ou Acácio são, se repararmos bem, os modelos de um Alfredo, e Eusebiozinho o de um Bexiguinha -, na sua caricatura a traço grosso [não por inépcia do autor, evidentemente, mas porque se trata mesmo de dar a ver uma grosseria lusa], nas falas em que detectamos a graciosidade e a subtileza de chouriços: ainda que Bexiguinha seja algo mais, as aspirações, que revela, ao voo filosófico tropeçam sempre na sua voz de falsete, na entoação alentejana, nas próprias visões toscas; Pessoa, por outro lado, ou Álvaro de Campos, já fornecera a forma de expressão tão linda, as possibilidades da escrita, poética, surpreendente, e a reflexão sobre o que se adivinha para além do mundo prático, como uma angustiante melodia, uma carência de infinito, uma saudade do futuro.   

Ver em Vergílio Ferreira a síntese de Eça de Queirós e de Fernando Pessoa, ver em Aparição uma lusa Nausée - porém mais iluminada, intuindo uma plenitude e um sentido que em La Nausée estão ausentes - é um elogio justo. Vergílio Ferreira, caído praticamente no esquecimento, é um dos pontos altos da literatura portuguesa.

  

1 comentário:

sonia disse...

Tenho do Virgílio Ferreira: Para Sempre, Aparição e Alegria Breve.
Lembro-me que fiquei num estado quase de transe quando li Aparição. Mergulhei no livro de corpo e alma. Para Sempre também me encantou. Gosto demais desse escritor. Sua linguagem penetra fundo no meu coração!