domingo, 30 de janeiro de 2011
DE LEITORES E DE LEITURAS
A mim, parece que é quase impossível que o modo como um leitor interpreta um romance não tenha que ver com um parti-pris ideológico. No sentido lato de «ideológico».
Sobretudo, julgo que uma mulher lê sempre com o que há em si de mulher, um homem como um homem. E podem dizer-me: Raio, que se esperava?
A questão é que ler como mulher significa, de algum modo, julgar as mulheres de um romance. Não sei se os homens também não julgam principalmente as personagens femininas - embora, no seu caso, de uma perspectiva masculina.
O problema é que se espera sempre uma identificação, ou seja: uma leitora aguarda, mais ou menos secretamente, que as mulheres de um romance sejam interessantes, ou que alguma delas o seja: mas o que é ser interessante? E por que teria de haver um modelo, um exemplo, quando no dia-a-dia encontramos pessoas de todos os tipos, interessantes e desinteressantes, e a própria verosimilhança exige que as personagens incorporem diferentes características e defeitos, insuficiências, limitações e manias, independentemente de serem femininas ou masculinas?
Uma leitura «feminista» ou uma leitura «masculinista» excluem, na minha opinião, diversas possibilidades e nuances: por exemplo, a possibilidade de que uma personagem feminina, porventura extraordinária, nos seja apresentada a partir do olhar de uma personagem masculina, que a diminui na sua grandeza; digamos: um marido infeliz e esgotado por muitos anos de relacionamento. Ou, claro, vice-versa. Mas também ao leitor cabe mover-se por entre essas perspectivas ilusórias e redutoras; cabe descobrir o «interesse» ou o «valor» deste ou daquela, para além da visão que (mesmo quando não seja directamente expressa por uma personagem) se percebe que recupera e reconstitui, para efeitos romanescos, a visão dessa determinada outra personagem. [James Wood é nada menos que brilhante nessa análise do ponto de vista que subjaz ao discurso; na análise do «quem realmente fala, aqui? Será mesmo o autor?»]
Não sou melhor leitor do que ninguém. Mas um segredo tenho: não julgo. Farejo com mais interesse as complexidades de carácter e a verosimilhança do que o reconhecimento. E, é verdade, gosto de pessoas impossíveis, aprecio personalidades malévolas e mesquinhas, não enjeito gente superficial ou estúpida, ou reaccionária. Talvez na vida o faça - mas, na literatura, certamente não.
sábado, 29 de janeiro de 2011
ECOS DO LANÇAMENTO E ECOS DE VENDAS
«Observo apenas», escreve Kant, na Crítica da Razão Pura, «que não raro acontece, tanto na conversa corrente, como em escritos, compreender-se um autor, pelo confronto dos pensamentos que expressou sobre o seu objecto, melhor do que ele mesmo se entendeu, isto porque não determinou suficientemente o seu conceito e, assim, por vezes, falou ou até pensou contra a sua própria intenção»: não é tanto que eu tenha falado, pensado ou escrito «contra a minha própria intenção»; é que a minha intenção não era senão um dos motores na construção de uma história que se modifica consoante a intenção de cada leitor, de quem quer que dela se aproprie. O que não deixa de ser estranho. É o mínimo que posso dizer: o que não deixa de ser muito estranho. Agradável e incomodamente estranho.
Senti-me acolhido e amimado. Objecto de atenção, curiosidade, interesse. Um agradecimento ao grupo que se empenhou em organizar a cerimónia, com tanto cuidado e carinho.
Agora, um interregno comercial, estúpido e infame, mas necessário: o livro pode ser encomendado on-line. [Sítio do Livro]. Está à venda na livraria Trama - que adoro, mas, entre pilhas de livros para organizar, ainda não encontrou tempo para referir este Nada Mais e o Ciúme, o que compreendo, por egocentrista que seja -, na livraria Barata - onde, pelo que me dizem, o esconderam bem - e na livraria Galileu, de Cascais.
Se os que têm curiosidade na obra e pensam que «irão comprá-la» (daqui a uma semana? um mês? um dia destes...?) não avançarem, não sei como diabo irei acabar de a pagar no imediato. Fica muito mal esta advertência no blogue? Olhem que não. Entendam isto como um acto de resistência. Sem qualquer vitimização da minha parte, sem embarcar em teorias da conspiração, peço apenas que se detenham um momento na seguinte pergunta: será mesmo que o sistema está montado para que uma voz que não chegue via editoras esteja morta à nascença?
PS: Um mail da Catarina, da Trama, fez com que me apercebesse da injustiça da minha consideração. O livro está em destaque na livraria, desde há muito. Os meus sinceros pedidos de desculpa à Trama.
quinta-feira, 27 de janeiro de 2011
GONÇALO M. TAVARES: O SR. ELIOT E AS CONFERÊNCIAS
De alguma maneira, O Senhor Eliot e As Conferências, de Gonçalo Tavares, é também um livro que se vai construindo em redor de um erro, ou de um ângulo errado. Ou de sucessivos ângulos errados. Obviamente, não posso dizer muito mais do que isto - e é pena, porque me apetecia, mas qualquer palavra em excesso estragaria o prazer da descoberta.
Há, de facto, um senhor Eliot como personagem: mas que Eliot é este? T. S. Eliot? Os nomes resultam, em GMT, de uma apropriação incompleta, mais simbólica do que realista: Eliot é Eliot e não é Eliot - um nome canaliza determinada energia histórica e biográfica, absorve certas referências, mantém uma aura, uma mitologia, mas, para além disso, a personagem que comunga esse nome com um escritor é uma caricatura; remete para o nomeado a partir de uma chave que distorce. Este Eliot, personagem de Tavares, é um escritor que faz uma série de conferências acerca de poesia. Cada conferência se debruça sobre um verso conhecido - as palestras têm, na assistência, Borges, Breton, Balzac ou Swedenborg. (Wahrol espreita a sala, numa das conferências, mas desaparece rapidamente).
terça-feira, 25 de janeiro de 2011
O NARRADOR: MARCEL, WATSON, PEDRO
segunda-feira, 24 de janeiro de 2011
VIKRAM SETH: UM BOM PARTIDO (3 VOLUMES)
Em primeiro lugar, o autor é um escritor indiano formado na cultura e na língua anglo-saxónicas, e que retira, de ambas as esferas, o mais rico e o mais interessante: uma criatividade mitológica e pagã, um espírito de observação subtil e minucioso, uma superabundância de vozes sagradas segredando-lhe aos ouvidos e uma disciplina do cepticismo e da frieza, num cruzamento que se realiza sob um humor quase desapiedado. O próprio V. S. Naipaul é um outro e flagrante exemplo dessa ligação de fontes que, num escritor talentoso, abre caminhos que raramente são negligenciáveis.
Em segundo lugar, o romance que aqui quero mencionar é um grande romance, no sentido, desde logo, da sua extensão: A Suitable Boy, Um Bom Partido na tradução portuguesa, em 3 volumes, é uma daquelas sagas familiares que precisamos de tempo, muito tempo, para ler, habituando-nos a personagens com as quais passamos a conviver num registo quase quotidiano, cujas qualidades e defeitos principiamos a conhecer na sua consistência, cujos rumos pessoais e laços inter-pessoais seguimos com gosto ou tristeza, surpreendendo-nos ou lamentando-os.
Nestas quatro famílias, os Mehra, os Kapoor, os Khan e os Chatterji, revelam-se protagonistas que reflectem a luta entre uma Índia antiga, tradicional, eterna, nas suas crenças e nas suas estratégias de manutenção de privilégios, e uma Índia jovem, em choque com um sistema de castas que se impõe como um destino. Lata, precisamente, é uma jovem que vai sendo desenhada nos seus contornos dilemáticos, que não poderíamos reduzir, senão abusivamente, à «rebeldia»: na verdade, é sob o signo de um amor que não coincide com as conveniências nem com a decisão familiar previamente negociada, que nos apercebemos da sua fragilidade e da sua inteligência, das suas hesitações e escolhas, sempre entre forças contrárias, igualmente avassaladoras.
Desde a dedicatória que este romance, bebendo nos modelos dos mestres, os refaz, contudo, com uma espantosa originalidade. E se a dedicatória pode ser um bom exemplo, então não resisto a citá-la:
«UMA PALAVRA DE AGRADECIMENTO
A todos quantos de mim são credores
De inúmeras dívidas onerosas:
Vós, musas minhas, cruéis e bondosas;
Meus bons pais, que mil zangas e humores
Sem queixas me sofrestes, não esqueci;
Tribunos mortos, cujas orações
Pilhei para compor minhas libações;
Todos vós, cujas mentes espremi
Sem dó, porque do tormento refém;
Tu, alma tonta, que com parco quinhão
Te bastaste para urdir esta ficção;
E tu, leitor, donde todo o lucro vem:
Comprai-me antes que o siso prevaleça,
Vos mirre a bolsa e o pulso desfaleça.»
sexta-feira, 21 de janeiro de 2011
CONSTANTINO CAVAFY: ÍTACA
«Quando partires de regresso a Ítaca,
deves orar por uma viagem longa,
plena de aventuras e de experiências.
Cíclopes, Lestrogónios, e mais monstros,
um Poseídon irado - não os temas,
jamais encontrarás tais coisas no caminho,
se o teu pensar for puro, e se um sentir sublime
teu corpo toca e o espírito te habita.
Cíclopes, Lestrogónios, e outros monstros,
Poseídon em fúria - nunca encontrarás,
se não é na tua alma que os transportes,
ou ela os não erguer perante ti.
Deves orar por uma viagem longa.
Que sejam muitas as manhãs de Verão,
quando, com que prazer, com que deleite,
entrares em portos jamais antes vistos!
Em colónias fenícias deverás deter-te
para comprar mercadorias raras:
coral e madrepérola, âmbar e marfim,
e perfumes subtis de toda a espécie:
compra desses perfumes quanto possas.
E vai ver as cidades do Egipto,
para aprenderes com os que sabem muito.
Terás sempre Ítaca no teu espírito,
que lá chegar é o teu destino último.
Mas não te apresses nunca na viagem.
É melhor que ela dure muitos anos,
que sejas velho já ao ancorar na ilha,
rico do que foi teu pelo caminho,
e sem esperar que Ítaca te dê riquezas.
Ítaca deu-te essa viagem esplêndida.
Sem Ítaca, não terias partido.
Mas Ítaca não tem mais nada para dar-te.
Por pobre que a descubras, Ítaca não te traiu.
Sábio como és agora, senhor de tanta experiência,
Terás compreendido o sentido de Ítaca.»
Tradução de Jorge de Sena
quinta-feira, 20 de janeiro de 2011
RUI KNOPFLI: O ESCRIBA ACOCORADO
quarta-feira, 19 de janeiro de 2011
1º LANÇAMENTO
Terei o prazer de ouvir o meu livro ser apresentado por uma amiga que admiro até quase à reverência, Elisa Costa Pinto.
Quando a convidava, respondeu-me, a propósito de pensar que eu deveria «preferir alguém exterior à escola» - uma sumidade de fora da casa, que emprestasse uma aura ritual, menos familiar: «É que eu sou tão caseira!»
Como se isso fosse um defeito. Como se, em quase tudo na vida, eu não escolhesse - sempre que posso escolher - o caseiro, como sinal de um cuidado e de um requinte que não encontramos «lá fora»...
terça-feira, 18 de janeiro de 2011
ALBERT COSSERY: A CASA DA MORTE CERTA - OU A VIDA COMO OBRA
domingo, 16 de janeiro de 2011
ANTONIO MACHADO: POESIA
sábado, 15 de janeiro de 2011
MIGUEL-MANSO: SANTO SUBITO (COMEÇADO A LER HOJE MESMO)
Voltei à Trama. Falei com Catarina que, no primeiro dia, seguindo o mandamento da sua voz interior, me não ligou nenhuma, completamente presa ao trabalho, e hoje me prestou uma atenção e um sorriso que me deixaram bem disposto para o resto do dia.
E saio de lá com Santo Subito, de Miguel-Manso, que me fora indicado pelo Homem do Fraque como um dos livros imperdíveis do ano passado.
Esta poesia de Miguel-Manso remete para uma cultura dos livros: Regresso à Biblioteca de Francisco Vieira, por exemplo, que é uma das partes do livro, evoca, nos títulos, Li Ching-Yuen, Àlvaro de Campos/Fernando Pessoa, Camilo Pessanha, Wenceslau de Moraes, Joseph Conrad, Peter S. Clements, Karl Marx-Friedrich Engels, João Falco/Irene Lisboa, Soeiro Pereira Gomes, Heinrich Harrer, Herberto Helder. São poemas que, mesmo quando mais longos, e alguns são-no, outros não, vivem, cada um deles, de um ângulo, uma invenção, um achado poético. Às vezes, um único verso é, como um aforismo, uma síntese total, uma descoberta poética.
Neste livro em que a experiência da cultura, da poesia e até simplesmente da língua latinas, isto é, do Latim como língua em que se exprimiram o melhor da cultura e da poesia, são um esteio permanente, há todavia uma erupção da fala simples, jovem, contemporânea, coloquial («A poesia, tipo,/ não precisa de, bom,/não é exactamente uma canção, uma praça ou um parque de Outono [...]», ou: «sim, Rui/[...]aquele mesmo hotel/cujo nome não me lembro/e é melhor assim [...]»), uma tensão entre a abundância e o despojamento (como entre o erudito e o simples) que afectam o leitor, que o obrigam a, digamos, uma leitura em estado de perplexidade. Porque, em última análise, nada, aqui, se lê simplesmente: há no verso que, numa primeira leitura, nos soa elementar, uma qualquer ameaça oculta, uma dúvida corrosiva. Um perigo sob a forma de um clarão. Uma tristeza perante os paradoxos injustos da realidade; um desafio ao que na realidade nos escapa: como no arrepiante «Café Gelo». Ou, mais metafisicamente, como perante o absurdo do nosso limite: porque, afinal, «está muito mal contado, isto da morte».
Miguel-Manso teria podido manter-se-me desconhecido? Claro que sim - como todos os autores discretos. E ainda pensam que a blogosfera não tem um papel inigualável?
A IMPERFEIÇÃO DE JORGE LUÍS BORGES
sexta-feira, 14 de janeiro de 2011
BORGES E A CORAGEM DE CONFESSÁ-LO
Jorge Luís Borges [Introdução a O Abutre, de F. Kafka]
TRAMA
quinta-feira, 13 de janeiro de 2011
LER-ME-ÃO?
Temo que, neste adiamento, as pessoas que acicatei se esqueçam de novo. Temo que o livro regresse ao nada mais rapidamente do que o que levou a de lá sair. Ele está, realmente e por fim, em condições de que o peçam e o leiam. Repito o endereço para encomendas:
http://www.sitiodolivro.pt/pt/livro/nada-mais-e-o-ciume/9789899712201/
A livraria em que o podem comprar é, para já, a Livraria Barata, na Av. de Roma, próxima do cinema Londres.
O primeiro lançamento será feito na minha escola. Não poderia - e não quereria - recusar o generoso convite. A ver vamos quando. Mas para todos os que prefiram manter-se afastados de um meio tão circunscrito, haverá um segundo lançamento [?] ou uma apresentação na própria Livraria Barata, a uma hora meio-nocturna, razoável, de que darei conta. Gostava que aparecessem. Para eu vos conhecer, para ouvir um encorajamento, receber um beijo ou um abraço. Até lá.
quarta-feira, 12 de janeiro de 2011
ALFRED DÖBLIN: BERLIN ALEXANDERPLATZ
terça-feira, 11 de janeiro de 2011
A MINHA MESINHA DE CABECEIRA
segunda-feira, 10 de janeiro de 2011
GONÇALO M. TAVARES: MATTEO PERDEU O EMPREGO
O último romance de Gonçalo M. Tavares, Matteo Perdeu o Emprego, é, como todos os livros do autor, primeiro que tudo um exercício lúdico. Gonçalo M. Tavares procura, por um lado, desmontar as máquinas que possui no quarto, como um garoto traquina que vê, no relógio ou no guindaste que a tia lhe ofereceu, uma possibilidade de desarticular, de arrancar peças, extrair as agulhas e as rodas dentadas; assim procede com a tradição literária, que herda e se entretém a esventrar; mas, ao mesmo tempo, comporta-se como um jovem Edison que se interessasse por saber o que pode juntar a partir do caos que provocou, quais os elementos que imprevistamente encaixariam, quais os órgãos mecânicos que produzem faísca. Desfaz e refaz, destrói para reconstruir com uma frescura alucinante.
Poderia referir Lewis Carroll como um dos inspiradores desta loucura experimental e criativa. Mas existe, em Carroll, um tom inocente, revelador de que as suas histórias não querem amedrontar as crianças a que se dirigem. Os males estão domesticados. Há um lado de «faz-de-conta» e brincadeira que torna as mais estranhas peripécias numa espécie de jogo. Em G.M.T., pelo contrário, sentimos, sob cada frase, a vibração de perigos malvados, o movimento oculto de monstros tenebrosos. Quando a Rainha, em Alice no País das Maravilhas, grita «Cortem-lhes a cabeça!», não nos assustamos, rimo-nos. Alice não a teme, responde-lhe, nem sempre bem-educadamente. A Rainha não é terrível, é cómica. Os textos de G.M.T têm sentido de humor, sem dúvida. Mas esse humor é cáustico e perverso; não nos faz simplesmente rir: atemoriza-nos um pouco.
A linguagem dos seus romances é profundamente poética; os aforismos, na maior parte dos casos geniais, são bandeiras que vai cravando, e remetem para um saber severo, sério, em que tendemos a crer. Mesmo quando se trata de um saber irónico, que se mina a si próprio por dentro, há um efeito e uma atmosfera sagrados, que nos impressionam. Matteo Perdeu o Emprego é tudo isto: um jogo irresistível, a partir de uma série de dispositivos brilhantes, que fazem com que funcione como um conjunto de contos minúsculos, autónomos, atómicos, que, todavia, buscam uma ilusória unidade, como se fossem capítulos de um continuum. «Ilusória»: o que liga um capítulo ao outro é um elemento irrelevante, artificial - o aparecimento, em dado ponto do capítulo, de uma personagem que será a protagonista do capítulo seguinte. E cada protagonista vale pela estranheza de um certo comportamento seu, um hábito que inaugure o conceito central desse capítulo.
Mas Matteo Perdeu o Emprego não é só um livro: é, enquanto objecto que seguramos nas mãos, um objecto de arte: as fotografias de manequins (bonecos articulados que exibem roupa, nas montras) constituem, também, separadores, e pedem uma outra forma de leitura, exigem leituras que se cruzem, se demorem no olhar, na pele, nos dedos. Convocam inesperadas sensibilidades e ressonâncias, misturam formas e artes. A leitura de qualquer obra de Gonçalo M. Tavares é sempre, em vários aspectos, diferente de uma simples leitura.
sábado, 8 de janeiro de 2011
BLOCH, EXTRAORDINÁRIA PERSONAGEM DE EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO
Lendo Brideshead Revivida (porquê chamar-lhe, em português, «reviver o passado em Brideshead»? poder-se-ia reviver o presente ou o futuro?), tropeço numa personagem, o diletante Anthony Blanche, que me reenvia para uma outra: Bloch, de Em Busca do Tempo Perdido, lembram-se?
Em Busca do Tempo Perdido é o auge da literatura humana. [Literatura humana parece uma estúpida redundância, mas admitamos que haja uma literatura angélica ou divina, sobre que me não pronuncio]. Não conheço, de nenhum ponto de vista, qualquer obra que se lhe assemelhe, e já várias vezes proferi um tal juízo, dogmático e arrogante. As inúmeras personagens do romance, em sete volumes, de Marcel Proust, vão-nos sendo apresentadas, ao longo do tempo e das páginas, segundo diferentes ângulos. É inquietante apercebermo-nos, aos poucos, de que o Barão de Charlus, que pela primeira vez descobrimos nos volumes iniciais (pelo olhar do narrador que recorda e se repõe, então, no olhar da criança que era), vai sendo completado e transformado à medida que o narrador cresce, e conhece melhor Charlus, com ele convivendo em novas situações. O próprio Charlus, claro, muda enquanto envelhece. Mas não é isso, não é só isso: o pequeno Marcel engana-se na sua observação; começara por conferir ao Barão qualidades que este nunca teve, porque se equivocou na interpretação de certo contexto em que o surpreendera. E o leitor equivoca-se com o narrador. Assume, sem saber, o seu olhar iludido, de modo que a série de erros que condiciona a percepção que se tem do Barão, só com o tempo, volumes mais tarde, se dissolverá e reajustará para permitir que nos aproximemos mais da realidade de Charlus. Não é soberbo? Não é genial, esta contenção de Proust, que não joga imediatamente com as cartas todas, mas as vai ocultando e revelando ao sabor de um tempo, que ele domina? De acordo com o amadurecimento do narrador, o qual, ao longo dos anos, não poderia manter-se uma consciência fixa, igual a si própria?
Bloch é, também, uma personagem extraordinária. Retomo-a, pois, muitos anos depois, a propósito de Anthony Blanche, de Brideshead Revivida, que o evoca claramente.
O jovem Bloch finge não notar que os demais, quando olham para ele, apreendem sempre um «judeu». Mas, na verdade, está obsessivamente consciente do seu «ser judeu» e está paranoicamente desconfiado de que os outros o estigmatizam pelo mero olhar. É esta permanente má-fé, esta luta de consciências, este querer fingir que não percebe ao mesmo tempo que não consegue não reagir agressivamente ao que julga perceber, que estão na origem das suas atitudes recatadas e ostensivas, entre um snobismo refinado e a mais inesperada grosseria, a sua necessidade de passar despercebido e a de dar nas vistas da forma mais provocatória. Frívolo, culto, carente e agressivo, superficial e profundo, a contas com a história de um povo em que se reconhece e não reconhece, Bloch é surpreendente: para si mesmo o é, aliás, como se ele fosse o primeiro a não poder prever a direcção do seu orgulho, do combate entre um complexo de inferioridade e uma claudicante convicção de superioridade.
Tudo me reconduz, pois, às personagens de Proust. Os melhores livros beberam de Em Busca do Tempo Perdido. Reviver o Passado em Brideshead é um livro que tem na sua genealogia a obra de Marcel Proust.
WAUGH DE NOVO
quinta-feira, 6 de janeiro de 2011
EVELYN WAUGH: REVIVER O PASSADO EM BRIDESHEAD
segunda-feira, 3 de janeiro de 2011
GIL DUARTE: NADA MAIS E O CIÚME
O tempo dos ressentimentos já lá vai. Seguimos caminhos diferentes. Opto (na falta de outras opções, escusam de mo recordar) por uma edição de autor, que me dizem ser «prestigiante» (ainda bem) e uma forma de «resistência» - aos grandes conglomerados, às editoras devoradoras, a um tentacular polvo; não sei; não me interessa. Gostava que me lessem. É isso. É por isso.
Acredito na eficácia do boca-a-boca. Acredito que três bons leitores, entusiastas, possam iniciar um movimento pequenino. Também não quero que este livro seja um «best-seller». Mas seria bom que chegasse a umas quantas almas (50? 100? 200?) e as prendesse a si.
Há razões para que se interessem. Há razões, sem dúvida, tenho modestamente de o admitir. Se não for uma, então que seja outra qualquer. Olhem. Uma excelente razão, talvez a minha preferida, é a lindíssima capa criada por Ana Cristina Marques.
Uma apresentação pública, com certa amplitude, está nos meus planos: mais tarde direi onde, direi quando. Apetecia-me que pudessem e quisessem aparecer.
Para já, para já, o livro pode ser encomendado aqui:
http://www.sitiodolivro.pt/pt/livro/nada-mais-e-o-ciume/9789899712201/
Até à vista.
domingo, 2 de janeiro de 2011
ROBERT LOUIS STEVENSON: O ESTRANHO CASO DO DR. JECKYLL E DE MR. HYDE
Tenho saudades do teu pendor ensaístico, disseram-me por estes dias. Dos textos que escrevias sobre a tua intimidade com certos livros. Desses posts que nos mostravam como te demoraras numa página, como te riras com uma frase, como amaras uma personagem. O teu blogue está a tornar-se, de algum modo, num catálogo. Vá! Regressa às origens.
O Profissão: Leitor deveria ser visto como um poliedro: algumas vezes citando, outras ensaiando; em certos momentos, se calhar, catalogando - do mesmo modo que ora visita a filosofia, ora a poesia, ora o romance: que interessa? O meu humor não é sempre o mesmo, nem o que me apetece fazer se mantém fixo num ponto ou se move sob uma linha contínua; talvez isso justifique o ajustamento e o reajustamento de ângulos que agradem mais a este leitor e menos àquele. Mas, posta a justificação de mau pagador, há que acrescentar que compreendo a sugestão. O «ensaio», neste sentido vago, de passeio do «flâneur», que nada guia senão o amor pelas páginas lidas, é a natureza primeira deste blogue. De facto.
E isto leva-me a um livro estranho, que li há já muitos anos: O Estranho Caso do Dr. Jeckyll e Mr. Hyde. Eu era jovem, a vida corria-me tranquilamente. Não conhecera o amor, porque as raparigas me aterravam. Mas, por isso mesmo, também não experimentara o sofrimento das paixões não correspondidas. Não tinha tido, portanto, a experiência, que o amor mostra, de me dividir, de ser duas pessoas: o homem feliz e em paz com a sua amada, e aquele que, na ausência, ou no ciúme, vê crescer em si a impensável monstruosidade.
Esse livro menor - ou frequentemente considerado menor - foi, então, a minha primeira visão da duplicidade humana no seu extremo: e ficou tão fundamente cravado em mim que depois, quando, mais tarde, nos tormentos das paixões que vivi, me tornava contrário a mim próprio, numa espécie de luta interna entre o bem e o mal, o querer e o não querer sofrer mais, a esperança e o desespero, o perdão e o ódio, a euforia e a depressão, a metáfora que encontrava para ilustrar a dupla personalidade era, frequentemente, a metamorfose do Dr. Jeckyll em Mr. Hyde.
Nabokov, num artigo que vim de reler, lembra que Hyde, o lado mau, «nunca perde o desejo de regressar à personalidade de Jeckyll». E esse aspecto, afirma, é o mais significativo, porque nos lembra que há um laço profundo entre ambas as personalidades, uma necessidade, em cada uma delas, de se completar na outra - e de retornar à outra. Poderíamos pensar, pois, que mais do que uma autêntica metamorfose, o que ocorre é, em Hyde, a «concentração» (e o termo é de Nabokov) do mal que já existia em Jeckyll. Não há homens bons, não há homens maus: ainda que nunca haja a oportunidade de se confirmar, todo o homem bom é um malvado em potência. Ou, na versão optimista, em que às vezes creio, todo o malvado é um bom homem em potência.
sábado, 1 de janeiro de 2011
GEORGE ORWELL: HOMENAGEM À CATALUNHA
Também os espanhóis são um povo cuja definição se faz em torno de um certo número de clichés - alguns muito semelhantes aos lusos, outros contrários, como se nós fossemos a parte melancólica e humilde de uma península exuberante e arrogante. Mas o facto é que os clichés sobre esse povo se vão confirmando de cada vez que fazemos uma viagem aqui ao lado, entramos numa loja ou em um restaurante madrilenos, conversamos com um indígena de Espanha.
Homenagem à Catalunha é um livro muito interessante, porque reúne diversas imperdíveis riquezas. Tomando posição na guerra civil de Espanha, George Orwell, do lado das forças anti-franquistas, vai registando as suas observações naquilo que será, por um lado, um documento fundamental, do ponto de vista histórico, para compreendermos o xadrez internacional que se projectava e reflectia ali, então; para compreendermos os movimentos e decisões de Franco, no horizonte de uma guerra mais vasta, entre Estaline e Hitler; mas, sobretudo, para compreendermos as características tipicamente espanholas que, em Espanha, esta guerra não poderia deixar de absorver. Nessa medida, o livro de George Orwell devém, por outro lado, também um fascinante documento sociológico. Tanto mais que a participação do autor se fará, sobretudo, em regimentos de anarquistas e trotskistas, clarificando o peso e a especificidade do anarquismo espanhol.
Porque em todos os espanhóis vibra um anarquista. Um maravilhoso anarquista. Antes de ser uma questão ideológica, ética ou política, o anarquismo, na sua versão espanhola, principia por ser uma questão de carácter e de maneira de ser. Uma fobia persistente à burocracia, à planificação, porventura à eficácia, uma preguiça latente, um ódio ao sagrado (que não se assusta ante expressões como «Me cago en Diós»), uma irreverência buliçosa, uma falta de controlo, com efeitos perniciosos (pois não se ganha um combate com fuzis que não funcionam ou que podem explodir-nos nas mãos) são, muito mais do que uma convicção fundamentada, traços desta personalidade: aqui, a coragem é tão grande e tão sublime como a falta de sentido prático.
Sou um leitor que saboreia o mínimo pormenor de Homenagem à Catalunha. Mais do que uma análise sobre as razões da derrota da esquerda - que também não deixa de ser -, o livro de Orwell é o livro de um sociólogo leve mas profundo, estimulante, com imenso sentido de humor e uma genuína admiração pelos companheiros de combate com que conviveu («admiração», aliás, nas duas acepções do termo: respeito e espanto).
É, pois, uma homenagem, no sentido mais completo da palavra: aos lutadores corajosos e inábeis, sensatos e loucos, ternos e ferozes: aos paradoxos vivos, sempre dignos, sempre íntegros.