Duas amigas minhas comentavam a semelhança de perspectiva entre Uma Viagem à Índia (já aqui referido), do génio português Gonçalo M. Tavares, e o inesgotável Berlin Alexanderplatz, de Alfred Döblin. Não os teria associado. E não posso dizer que me lembrasse do que possibilitaria a analogia entre os dois livros. Em casa, já com Berlin Alexanderplatz nas mãos, folheando-o como se folheasse a memória de uma leitura feita há muito, percebi. Claro.
Também em Berlin Alexanderplatz, o herói - ou anti-herói -, Franz Biberkopf, parte, como o Bloom de Uma Viagem à Índia, de um facto horrendo: a mulher assassinada. [No primeiro caso, porque o próprio Biberkopf a matara, no segundo porque o pai de Bloom mata a nora]. A morte violenta é a provocadora de uma viagem, uma demanda, uma aprendizagem, uma transformação.
Lembro-me de um outro livro da autoria de Döblin, posterior, em que este narra uma viagem (fora e dentro de si próprio, sem dúvida), a sua fuga da Alemanha nazi, passando por Lisboa. Há uma descrição da cidade, dos seus habitantes, de um ruído nocturno, tipicamente português, que impede as pessoas de dormir; há uma descrição dos eléctricos e o recordar do seu espanto ao cair numa cidade cheia de vida e desperdício (ao contrário da Alemanha de que escapava, marcada pelo silêncio, pelo medo, pelo racionamento, pela violência); e, sobretudo, há aquela tenebrosa passagem, que tanto me envergonhou, acerca do som característico com que certos portugueses arrancam às profundezas um escarro.
Mas regressemos a Berlin Alexanderplatz. Trata-se de uma dessas obras monumentais - a wikipedia compara-a a Ulisses, mas eu lembro-me imediatamente de Os Cadernos Póstumos de Mr. Pickwick ou O Homem sem Qualidades - em que se sobrepõem diferentes tipos de escrita: a linguagem erudita, a sabedoria bíblica, a fala de rua, berlinense. Cruzam-se diferentes referências na reconstituição dessa viagem que aproxima Biberkopf dos vários rostos do mal, que prefiguram sempre as garras e as ameaças do nazismo: veja-se como Reinhold, que - se bem me lembro - nunca perceberemos o que tem precisamente contra Franz Biberkopf , sempre que dele se aproxima, o faz com uma intenção e uma sanha pérfidas e persecutórias.
Döblin - como Musil, como Bröch - está na raiz e no horizonte de Gonçalo M. Tavares. Os seus homens amputados, ou em demanda, os seus Walser e os seus Bloom, recuperam - brilhantemente - o melhor que tais autores de língua germânica haviam construído: estes romances, enormes, dolorosos e falhados. No melhor e no mais interessante sentido da palavra: falhados.
7 comentários:
Gostei muito de sua postagem. Não li nem o livro de Doblin, nem O homem sem qualidades, apenas trechos dos dois numa disciplina do doutorado em letras. Já do Gonçalo Tavares, li Jesuralém, mas preciso conhecer mais.Da literatura portuguesa contemporânea, li bastante apenas Saramago e Lobo Antunes. Um abraço!
E gosta de Saramago e de Lobo Antunes? Da literatura portuguesa, Luigi, na minha modesta opinião, se alguém vale a pena ser conhecido é Gonçalo M. Tavares. (Sem ignorar, claro, alguns outros preciosos). Cposas como Matteop Perdeu o Emprego ou Uma Viagem à Índia são de uma originalidade que chega a magoar.
Sim, acho que deve haver alguns autores bem originais por aí como há por aqui, mas por menos geniais que sejam Saramago e Lobo Antunes, não entendi sua colocação. Você acha que não vale a pena ler os autores de A viagem do elefante e Eu hei de amar uma pedra? Um abraço!
Releio o que escrevi, Luigi, e percebo a razão do equívoco. deveria ser lido assim: Luigi escreveu que conhecia Saramago e Lobo Antunes, e, nesse contexto, perguntei-lhe se gostava deles. Por interesse, por curiosidade. Aliás, pessoalmente gosto muito de alguma coisa de Saramago e de alguma coisa de Lobo Antunes. A minha pergunta era pura curiosidade. Gostou do que leu deles? E depois, encerrado esse assunto, entrei em outro: como fundo continuava sendo «literatura portuguesa», aproveitei para recomendar, «não desfazendo dos outros», como se diz em Portugal, um autor que considero especialmente recomendável, que é Gonçalo M. Tavares. Saramago é bom, Lobo Antunes também. Muitos outrros contemporâneos: João Tordo, Mário de Carvalho, etc. Mas se só pudesse levar um autor contemporâneo português para uma ilha deserta, Luigi, a minha escolha recairia sobre Gonçalo M. Tavares. Um grande abraço!
Ufa.Não sei se li mal, mas enfim, o importante é que a literatura dos dois ainda está valendo. Bem, agora vamos a resposta: quando eu era adolescente, há uns 13 anos, gostava muito do Saramago, depois ele ficou como um autor mais na minha lembrança, mas acompanhava todas as publicações dele aqui no Brasil. Li cerca de 15 livros dele, entre os quais destaco Memorial do Convento, A caverna, O evangelho...e A viagem do elefante. Já o Lobo Antunes é uma leitura mais atual.Li cerca de 10 livros dele, dos quais destaco Eu hei de amar uma pedra e Conhecimento do inferno. O Lobo Antunes é minha referência de hoje. O Gonçalo ainda preciso ler. O equívoco talvez tenha se dado porque aqui no Brasil, nas universidades as pessoas começaram "a torcer a cara" para o Saramago em detrimento da literatura do Lobo Antunes. pensei que talvez aí já tivessem feito o gesto para os dois. Gosto dos dois, acho que o Saramago traz algo mais de conceito para a literatura e o Lobo Antunes cria mais em termos de linguagem, construção. Desculpe o aborrecimento, mas como alguém que se interessa pela Literatura portuguesa queria saber sua opinião.Um abraço!
aborrecimento nenhum, Luigi, gosto muito desta conversa sobre livros...
Acabo de adquirir o livro, parece interessantíssimo!
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