sábado, 15 de janeiro de 2011

A IMPERFEIÇÃO DE JORGE LUÍS BORGES



O que faz, talvez, de Jorge Luís Borges um escritor que temos sempre prazer em ler, sobretudo no que respeita aos seus ensaios, é um misto de mitologia e de imperfeição que ele manipula com grande seriedade.

Sei que este primeiro parágrafo está no limiar do iconoclasta. Mas não era minha intenção; deixem-me explicar. Nós sabemos, e já até incorporámos no nosso imaginário de leitores de Borges, que os elementos históricos ou biográficos que este refere são, frequentemente, incorrectos. Uma data aproximada, um elemento confundido, um pormenor que não se acerta com os factos verificáveis. Mas essa negligência, que seria imperdoável em qualquer estudo académico, adquire, em Borges, um encanto muito peculiar, porque, nele, existem sempre labirintos em que nos perdemos, de modo que nunca sabemos muito bem o que é real e o que é ficção. Ninguém como Jorge Luís Borges para conferir uma indiscutível verosimilhança aos seus tratados históricos inventados, às suas insensatas enciclopédias chinesas, ou para nos fazer crer que pode ter existido um louco como Pierre Menard, o segundo autor - e sem incorrer em plágio - de Dom Quixote. Da mesma maneira, todavia, nos seus estudos, nas suas apresentações de autores ou de obras, nas suas conferências, tudo é importante - enquanto interpretação, leitura e reflexão pessoais - mas, por outro lado, muito desse «tudo» pode ser troca ou invenção.
Essa deliciosa imperfeição (mas ainda assim imperfeição, como o é qualquer imprecisão segundo os padrões convencionais) confere a Borges liberdade para construir a sua mitologia. Os mitos de Borges são as obsessões de Borges. E se todos nós, de uma maneira ou de outra, somos obsessivos, não há muitos de nós que, como Borges, tenhamos conseguido fazer dos nossos pesadelos ou dos nossos fascínios psicológicos, dos nossos complexos e temores, ideias esteticamente esplêndidas, teorias seríissimas que não podem ser levadas a sério senão durante o tempo da sua leitura, símbolos e mitos: e nessa corrente tudo se junta: todos os livros, sim, mas tal é já sabido - o próprio Borges se encarregou de erigir em mito a obsessão de uma biblioteca com todos os livros; mas também o conjunto dos sonhos que a humanidade sonhou desde os primórdios. Desde que um Adão e uma Eva tiveram, pela primeira vez, consciência de que sonhavam.

2 comentários:

Mariana disse...

Me encontrei neste post, encontrei muitas coisas, encontrei o assombro ingênuo com que há vinte anos atrás li Borges sem qualquer mediação, preparo ou apresentação. Os contos fantásticos, absurdos, lógicos, ilógicos. Lindos contos, terríveis. "O jardim dos caminhos que se bifurcam", "Tlön, Uqbar, Orbis Tertius", "A mote e a bússola", "Pierre Menard", "O imortal", "O Aleph", "Os teólogos", a absurda "Biblioteca de Babel". E certo Borges portenho, nos poemas, nas histórias de bandidos terríveis. E o ensaio, imiscuindo-se à ficção, esta com tintas de ensaio. Completamente apaixonada por aquela insensatez toda.

josépacheco disse...

Como a compreendo. É irresistível. Fica-se completamente contaminado. E tudo ali é filosofia muito séria, mesmo nos contos, mesmo a propósito da narrativa. As questões essenciais estão lá. As imprecisões são irrelevantes - e engraçadas, até (quando as detectamos).