Interrompo Correcções. Porquê? Confesso: porque este livro de grande extensão [512 páginas na tradução portuguesa] está a ser consumido tão rapidamente por mim que, aproximando-me já do fim, desejo deter-me, reter-me. [Pressinto uma conotação sexual no que escrevo]. Não quero concluí-lo, preciso de me demorar nele: desejaria gastar meses, senão anos, em torno desta obra-prima. Ridículo, talvez? Sim senhor, mas quem disse que eu não era ridículo?
E, portanto, retomo o livrinho que Paulina me ofereceu: Cosmos, de Witold Gombrowicz.
De Gombrowicz, o autor polaco cuja obra tantos equívocos gerou, lera - também oferecido, suponho - um conjunto de cadernos filosóficos, misto de rascunho, preparação de um programa de ensino e, ao mesmo tempo, preparação para a morte. Com os dias contados, Gombrowicz agarrara-se, com um derradeiro entusiasmo, a essas digressões, muitas vezes resumidas a uns quantos tópicos, sobre Hegel, Marx e os existencialistas.
Cosmos é um livro inadjectivável. Foi um dos livros proibidos na Polónia durante o período estalinista. Como o próprio Gombrowicz dirá mais tarde, em entrevista, «Considerado como escritor de vanguarda, pensavam que eu era um homem de esquerda. Ora eu sou um escritor dialéctico, fora de quaisquer categorias, ao mesmo tempo conservador e revolucionário».
Percebo o que há de absolutamente inovador em Cosmos. A escrita, antes de mais, como se, ao longo do texto, em cada frase o autor criasse um presente fechado sobre si, e a frase a seguir tivesse de tornar a nascer do nada, desligada do momento anterior: e como se, por outro lado, a fala do narrador, a sua escrita, estivesse permanentemente desequilibrada pela interferência do pensar. Ligações imprevisíveis, associações ilógicas, ou feitas de acordo com uma lógica que não é a da "comunicação" e sim a de um monólogo subjectivo.
Mas mais do que isso, Cosmos é um romance metafísico: uma investigação, segundo o autor, sobre as «origens da realidade». Esta investigação situa-nos perante a realidade como caos: tudo é infamiliar, estranho, perturbador; e nessa imensa e entranhada estranheza, certos aspectos devêm sinais a partir dos quais se possa constituir - ou buscar - uma ordem. Sinais, também eles, estranhos e cruéis ou, pelo contrário, insignificantes, como «um pássaro enforcado, um cajado dependurado, um gato suspenso pelo pescoço, um homem também na mesma posição» e ainda «manchas, pegadas, setas, bocas que se justapõem, cerimónias eróticas»: indicadores de uma qualquer misteriosa direcção, de uma secreta comunicação ou de um imprevisível sentido da realidade.
Lemo-lo numa exaltação perturbada. E percebemos que, qualquer que fosse a visão subjacente à nossa cultura literária, esta está terrivelmente incompleta enquanto não contiver Gombrowicz: precursor de tantos percursos, demolidor de muitos outros, trabalhando intensamente uma mescla de ficção, poesia e filosofia, de que se não sai incólume.
4 comentários:
Não conhece esse autor. Parece ser bastante interessante.
Valeu a dica, abraços.
Ok, depois emprestas para também me perturbar...estou curiosa.
São
Caro Pacheco, contém este uma pergunta fora de contexto, mas não sei a quem recorrer, e também não possuo a paciência necessária para esperar uma postagem mais adequada para lhe fazer tal indagação. Ando a buscar novos (velhos) romances em uma lista que classifica os cem melhores romances do século 20 segundo um pasquim brasileiro http://diariograsiela.wordpress.com/2007/09/24/os-100-melhores-livros-da-literatura-universal-segundo-a-folha-de-sao-paulo/. Na posição 90ª aparece um romance de Henry James, A Tigela Dourada. Porém não o encontro. Nem qualquer tipo de referências na web! Sou brasileiro. Teria este livro um título diferente na edição lusitana? Encontrei do mesmo Henry James, A Taça de Ouro, seria o mesmo romance? Agradeço, desde já Pacheco, qualquer luz acerca desse mistério.
Três comentários que me entusiasmasm.
Obrigado, prezado Jamil, pelo interesse manifestado. (Não tem escrito no seu blogue, pois não?)
querida São, fico contente por andares a espreitar-me o blogue: não duvides, empresto-to assim que acabe.
E caro Bruno Bravo, também nunca ouvi falar de uma Tigela Dourada, de James. Apostaria que se trata da Taça de Ouro, numa tradução menos recomendável. (Aliás, custa-me a acreditar que H. James tivesse uma tigela e uma taça, ambas de ouro; seria muita coincidência. Trata-se com certeza da mesma obra...)
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