Pensei usar, como título deste post, «O Que é Precisamente um Homossexual?»; parecia-me uma pergunta provocatória. Mas reconsiderei: em que consistia a provocação senão, vendo bem, no facto de se reduzir o homossexual a um objecto que se disseca? Desagradou-me, desisti do título.
E, no entanto, o que é um homossexual? Não falo de um gay: o conceito de gay é diferente do de homossexual; diz respeito a uma representação cultural da homossexualidade, que implica a assunção orgulhosa e festiva da mesma, como uma certa maneira de estar na vida. É-se gay como se é hippy ou freak: trata-se de uma escolha de tribu, de indumentária, de arte, de estilo.
Trato a questão da homossexualidade porque ela me irrompe a propósito de um livro de E.M. Forster. Maurice, completado em 1914 - mas publicado somente em 1971, não certamente por acaso - é um desses livros que se lêem numa vertigem, como à beira de um precipício de que não conseguimos afastar-nos. Precisava de ir para a cama, mas continuava a dizer-me «Só mais um capítulo» e, meia hora mais tarde «Agora é que é o último»: todavia estamos presos, sabem como é?, até ao momento em que, por fim, a cabeça cai sobre as páginas.
A homossexualidade descrita por Forster é típica de jovens de colégios ingleses, que se vão descobrindo a si próprios, ao seu corpo e ao seu desejo, no círculo de uma camaradagem com os colegas, com os quais partilham um espaço e, portanto, uma intimidade. Está longe de ser uma homossexualidade que se exponha. Pelo contrário: os professores vigiam, as mães, quando os recebem em casa, nas férias, empurram-lhes, para cima, primas ou vizinhas casadoiras. Em muitos casos, é uma condição que a vida se encarregará de dissolver: haverá os que efectivamente se casam e têm filhos: a homossexualidade teria sido, para eles, uma experiência suscitada unicamente pela proximidade erótica de outros rapazes e pela ausência de mulheres? Despiram-na sem problemas, quando tiveram de vestir outra roupa? Ou recalcaram-na? Ou reprimem-na no dia-a-dia, desejando e sonhando ainda com aquilo de que, porém, abdicaram?
Sei, pois, o que é um homossexual à luz deste romance, Maurice. É um homem - não um homem num corpo errado, não um homem que deveria ter nascido mulher, mas um homem. E o que caracteriza este tipo de homem, digamos assim, é uma certa forma de percepcionar a realidade. Porque o desejo está sempre, precisamente, ligado a uma certa forma de percepcionar: desejar uma mulher é percepcionar as mulheres (e uma em particular) de um dado modo, conferindo-lhe um sentido que o corpo masculino não possui para esse olhar; pelo contrário, desejar um homem é compreender de uma dada forma o corpo do homem, um movimento, um ritmo, uma força singulares.
Neste livro, acontece a um jovem (Clive) deixar de ser homossexual porque, bruscamente, devido a contingências diversas, a sua percepção se modifica. Clive não tinha procurado mudar, não quereria sequer mudar, uma vez que tal mudança ia trazer sofrimento a Maurice, que se apaixonara por ele e por quem estivera apaixonado. Mas nada podia fazer: a sua percepção mudara e, portanto, desaparecia, instantaneamente, a atracção pelo objecto de desejo, que amara enquanto (e só enquanto) o percepcionava de outra maneira.
Não é um tratado, não é um ensaio, não é uma abordagem científica da homossexualidade. Está completamente errado, ou poderia estar certo; tem - ou não - que ver com a própria experiência do autor. Não sei, não me interessa. É uma tese artística, é um motor ficcional. Constrói um romance que nos entra no sangue. É quanto basta.
2 comentários:
Maurice realmente é um daqueles romances que facilmente "nos entra no sangue". De uma escrita belíssima, Forster consegue criar (con)textos com os quais qualquer pessoa se pode identificar, de múltiplas formas.
Conviria, penso, contextualizar o romance na sua época, o que a meu ver o torna ainda mais rico. As contingências políticas e sociais ditaram o nascimento e subsequente esconder do romance, publicado após a morte de Forster. É dedicado a dias melhores, em que Maurice e Alec possam viver livremente o seu amor e terem o seu final feliz; por isso Forster os libertou da melhor forma que pôde. É um dos primeiros finais felizes do género.
Igualmente, Clive não deixa simplesmente de ser homossexual... mas aí talvez a adaptação cinematográfica seja mais óbvia neste sentido. Neste caso, as imagens realmente falam volumes, e o som é um som muito triste.
Obrigado, Dan, pelas importantes achegas contextualizadoras. Tem toda a razão, elas são importantes. Não vi o filme - e nada sabia acerca dele, vou pesquisar: é de quando? de quem? -, e assumo sem qualquer dificuldade que a minha leitura foi muito rápida (eu diria voraz), sem se deter nos meandros e em ilações fundamentais. Voltarei a Clive - admito que haja mais do que o óbvio que eu expus num breve post. Volte sempre, gostei muito do seu comentário.
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