domingo, 13 de março de 2011

ADÍLIA LOPES: OBRA


É uma coisa de que me orgulho muito, devo confessar:

Na Biblioteca da escola em que lecciono, numa sessão de uma série a que chamei Ouvisões, convidei os alunos a ligar e a expor a poesia de Adília Lopes (que poucos conheciam e é ainda desconhecedíssima, se exceptuamos os consumidores oriundos de uma certa elite cultural), a pintura de Paula Rego (que todos reconhecem e se tornou indiscutível) e a música dos Deolinda, que ultimamente está na moda, merecidamente, aliás, mas, à época, dava os primeiros passos, ou os primeiros acordes - de maneira que ainda constituíam novidade.


O ponto comum deste cruzamento (poesia, pintura e música) era o grotesco: um certo trabalho sobre o grotesco; e, claro, o facto de esse trabalho artístico ser, nos três casos, realizado por mulheres. [Também nos Deolinda, porque embora haja, na banda, músicos do sexo masculino, não só a vocalista, Ana Bacalhau, é uma mulher, como a imagem ou o heterónimo para que o grupo remete, a Deolinda que lhe dá nome, seria uma jovem típica portuguesa, à janela, entre gatos...]


Voltemos a Adília. A sua poesia possuía-me completamente. Lera excertos, lera alguns livros breves, um já com muitos anos (talvez o seu primeiro, Um Jogo Bastante Perigoso...) e vinha de resdecobri-la, e completá-la na gigantesca Obra, que reúne poemas seus de várias proveniências.


Os poemas de Adília têm uma forma quase crua de enunciar nomes e espaços. Quando nos fala das paredes «em obras» da faculdade, ou do escritório de um senhor que não me lembro quem seja, ou de um conferencista, ou de um escritor ou de um professor, nós sabemos que está a nomear objectos reais do seu círculo geográfico, académico, familiar, de amizades. E a «oficina do grotesco» (para referir o nome de um grupo dramático de boa memória) principia precisamente aí, nesse enunciar o real para o denunciar em inesperadas deformidades. Um desejo insatisfeito, uma omnipresente frustração perante a monstruosidade de que resulta o choque entre o desejado prazer e a penosa realidade tornam os sonhos em pesadelos risíveis: objecto da vingança perpetrada pelo escárnio e pelo maldizer.


A poesia de Adília é, por vezes, brutal: com os meus alunos, procedeu-se a uma selecção, próxima de censura, que evitava os poemas de linguagem mais explícita e escabrosa. Mas é um canto que caminha sempre entre uma sensibilidade triste, uma ternura talvez demasiado frágil e quase inocente, que regressa continuamente, e o riso sarcástico e endemoninhado: caminha na proximidade dos contos e mitos infantis (a carochinha, a sereia, o príncipe), mas para deles extrair uma assustadora perversidade.


É uma poesia imperdível: como raros autores na novíssima poesia portuguesa, Adília não é igual a ninguém mais. Inventou-se, forjou-se, ri-se. À nossa custa, sem dúvida. À sua custa, certamente. E corajosamente.

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