quarta-feira, 9 de março de 2011

MIKHAIL CHOLOKHOV: O DON TRANQUILO **



Na (dir-se-ia que descoordenada mas, de facto, dotada de uma lógica própria) minha leitura de diversos livros quase simultaneamente, venho de fechar o segundo volume de o Don Tranquilo.

O Don em causa, para evitar equívocos, não é uma pessoa, mas o rio don, aliás só periódica e ilusoriamente tranquilo. Que acontece do primeiro volume para o segundo? Tudo muda. Sobre as mesmas paisagens, na proximidade visível e audível do omnipresente rio, tendo como personagem colectiva os cossacos e os seus cânticos dolentes e sarcásticos, tudo muda porque os ventos da história transformam a geografia humana. E o que no volume anterior era tão-só pressentido, as rodas de uma revolução iniciando clandestinamente a sua marcha - os propagandistas perseguidos pela polícia do czar, as reuniões secretas com camponeses absorvendo a nova verdade... -, abate-se, neste segundo volume, em toda a sua força. Vivemos, agora, os tempos da revolução bolchevique. O exército conhece fissuras e discussões internas. As personagens, algumas das quais já nossas conhecidas do primeiro livro, vão-se situando, inseguras ou firmes nas suas ideias, perante uma nova realidade, perante novas expectativas e outras promessas.

Ler estes dois volumes tem, precisamente, isso de extraordinário: mostrar-nos o labor da história e a mudança das pessoas, determinada pelo tempo. Sabemos já que, ao longo dos quatro livros que constituem o Don Tranquilo, o rio será precisamente metáfora de um tempo enganador, pacífico e tremendo, carregando em si inimizades e amores, revolução e serenidade, guerra e paz. (E não uso inadvertidamente o título de Tolstoi, consciente, agora, do modo como Cholokhov procura, no seu romance, seguir a visão imensa do mestre).

Este volume é o mais claramente político. Para quem, como eu, tinha lido o anterior há não muito tempo, falta, aqui, o esteio dramático que tanto me interessara naquele: falta, antes de mais, Aksínia. A personagem que tinha tocado o primeiro livro com uma força e uma grandeza atordoadoras, profundamente femininas, tem, agora, uma breve aparição. E falta amor: falta a pulsação de uma história de amor impossível, precisamente a de Aksínia. É só já quase nas últimas páginas, que venho de ler, que um amor capaz de mover montanhas se assume na relação trágica de Buntchuk e Ana. Mas lembrar-nos-emos de Ana como de Aksínia? Sonharemos com ela? Desejá-la-emos com a mesma dolorosa intensidade dos sonhos irrealizáveis? Compreende-la-emos tão completamente, na sua semelhança e na sua diferença em relação a nós mesmos?

O que é fascinante neste volume diz respeito mais à psicologia de massas do que à de indivíduos; mais à História do que à história (ou a estória); mais ao testemunho da revolução bolchevique do que ao testemunho da paixão erótica; muito mais à consciência de personalidades políticas (e aos dilemas éticos que as escolhas políticas implicam) do que à consciência de pessoas existindo, como se a existência fosse um terreno de relações e sentimentos prévio a todo o compromisso ideológico. Este volume é um excelente ensaio de História e das ideias políticas na Rússia, mas é um insuficiente romance. Coisa que o primeiro, seguramente não era.

3 comentários:

sonia disse...

Acho que sou mais chegada à psicologia de indivíduos do que da psicologia de massas. Provavelmente iria gostar mais do primeiro volume.
Abraço e obrigada por nos trazer um regalo como esses seus textos!

Zé alberto disse...

Sempre incisivas e minuciosas as suas exposições. O seu blog, José, tão discreto quanto valioso.

abraço.

Pinto de Sá disse...

E chegou a ler os volumes 3 e 4?