Em 2008, João Tordo publicou um livro chamado As Três Vidas. Suponho que foi essa a sua obra vencedora do Prémio José Saramago. [«Suponho» é uma maneira de falar: na verdade, sei que foi.] Só agora o leio e, de todos os João Tordo que conheço, anteriores ou posteriores, considero As Três Vidas o melhor. (Mas também gostei muito de Hotel Memória, o primeiro que li...)
A escrita é despojada e eficaz. Noutros romances, como por exemplo O Bom Inverno, esse despojamento parece, por alguma razão, um défice: como se o autor tentasse um trabalho sobre a linguagem, que se nota num ou noutro momentos, mas não alcança definitiva e continuamente. Em As Três Vidas não se sente, todavia, falta de poesia ou de uma linguagem mais luminosa: percebe-se que se trata simplesmente de contar uma história. O romance vale pela articulação dessa história, muito realista e credível embora com um eco sinistro, uma sombra de possibilidades terríficas, que nos fazem sentir a proximidade de Orwell e de Kafka - aliás, e não por acaso, dois autores que constam dos livros recomendados por uma das personagens à outra, seu empregado e vagamente discípulo.
Tétricas vias, portanto. Um dos problemas deste romance, de resto, é talvez precisamente certo receio de enfrentar e desenvolver até às últimas consequências algumas das mais tenebrosas (mas também promissoras) possibilidades sugeridas: o incesto - por exemplo - rapidamente se resolve como um equívoco que ocultava, afinal, a mais angélica das situações. Aquela espécie de corcunda de Notre Dame nada tem de terrível, a não ser, quando muito, o mau cheiro: é um pobre de Cristo.
João Tordo, nesta sua estreia literária (e é uma estreia na entrada pela porta grande, ainda que possa não ser o seu primeiro livro), joga brilhantemente com as tensões e o suspense: a leitura não tem, pois, pausas nem tempos mortos; a ideia cativa desde a primeira linha; os diálogos são de uma credibilidade quase perfeita. Aborrece que haja sempre alguém a acender um cigarro, ou a perguntar, a propósito do que o seu interlocutor afirmara, simplesmente: «E?» (implicitamente: «E então?» ou «Que se segue daí?»)? Pois aborrece, mas são pormenores. Talvez até deliberados e com um determinado carácter simbólico.
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