domingo, 23 de maio de 2010

SOMERSET MAUGHAM: SERVIDÃO HUMANA

O conhecimento que tenho de uma grande parte da obra de Somerset Maugham e o prazer com que a ela continuamente retorno são dos principais legados da minha mãe. É-me sempre grato, ainda hoje, ouvi-la contar (e voltar a contar) os enredos. Lembro-me, nos mínimos pormenores, das histórias que me narrava em criança: ao Capuchinho Vermelho ou à Branca de Neve, preferia o evoluir mais complexo dos livros que ia lendo, e Somerset Maugham foi sempre o seu autor predilecto, pelo que, oralmente, a minha familiaridade com os romances deste autor terá principiado relativamente cedo.

Minha mãe, de resto, tem toda a razão. Pegamos numa novela menor de Maugham, Um Casamento em Florença, por exemplo, e percebemos como, até quando alguém escreve sem outro intuito que não o de divertir-se e divertir o leitor, a qualidade, se existe, é indisfarçável - apesar dos erros, das coincidências, da ausência de rigor, da displicência...

E quando um autor que se dá ao luxo de ser muitas vezes displicente é, mesmo assim, extraordinário, imaginem o que sucede quando se decide entregar convictamente ao trabalho, com uma ideia forte, personagens interessantes, espírito de observação, originalidade.
Nem precisaria de se tratar de um romance: Somerset Maugham é, aliás, dos mais apurados escritores de "contos" que conheço, e um conto não é um romance imperfeito nem mais magrinho, não é um texto incompleto ou resumido, mas uma forma própria, porventura mais difícil, com um ritmo especial e uma orquestração do tempo e da tensão muito particulares, que ele domina magistralmente. A Chuva é incomparável, e de uma intuição psicológica agudíssima.

A minha mãe, todavia, escolheria Servidão Humana e O Fio da Navalha. Compreendo-a. Servidão Humana é a história de Philip Carey, um jovem extremamente inteligente mas com uma deficiência que o marca e complexa nas suas relações com o mundo em geral e com as mulheres em particular. E Mildred, uma mulher de "baixa extracção social" (ah, parece-me estar ouvindo esta expressão à minha mãe...), entrar-lhe-á na vida, capaz de o usar, abandonando-o e regressando sucessivamente, estragando-lhe todas as relações entretanto iniciadas, segura de que ele lhe perdoará e aceitará tudo, a prepotência, o desamor, o desprezo, numa dependência sem limites. É um romance amargo, que penetra o âmago da psicologia do homem, das relações, da frieza e da servidão. É de uma intensidade e de uma profundidade inesquecíveis.

De facto, as personagens de Somerset Maugham são inquietantemente próximas de nós. Reconhecemo-las. Conhecemo-las bem, no fundo. Exasperam-nos, embora raramente sejam más ou de uma temível perversidade: apenas demasiado fracas ou excessivamente fortes, criando, nessa desigualdade, a relação errada e doentia; apenas obsessivas e tristes, perseguindo sonhos ridículos. Apenas como nós, vistas a uma luz que nos permite compreendermo-nos melhor, mas nem sempre nos redime. Mas que, ainda assim, ainda que nem por isso nos salvemos, temos de ler.

4 comentários:

Blog do Maria Zélia Futmesa disse...

Pacheco,
Terminei de ler o livro, divino...Philip, vive tantas dores, em busca de entender o sentido da vida. O que ficou, prá mim?? A semelhança de tais situações vividas nas personagens miseráveis que ele encontra ao longo de suas visitas como médico... Acima de tudo a bondade, virtude impar nesse grande homem Philip... Eu simplismente me apaixonei!!!! Porque a vida só tem sentido para quem vive, viver é a coisa mais dífícil!!É quase beijar a morte!!!Morrer e nascer a cada dia!!!
Ana Lucia Lopes Meira

josépacheco disse...

Ana Lúcia, obrigado pela sua visita. Vou espreitar o seu blogue, estou muito curioso. Apareça sempre!

josépacheco disse...

Não consigo encontrar. Ainda não está pronto?

Anónimo disse...

Pacheco,eu não tenho Blog,mas estou no facebook,caso você tenha me adicione. Ah,Vou aparecer!