segunda-feira, 17 de maio de 2010

KIERKEGAARD: TEMOR E TREMOR


Quando se liberta da rigidez do significado, ou seja, de ter de «significar coisas», a linguagem ganha um insuspeitado poder, descobre virtualidades imprevistas e transforma-se no seu próprio sentido: comporta em si a sua verdade, em vez de se limitar a dizer o que sucede no mundo fora de si, como se fosse o mero veículo de uma mensagem sobre a realidade exterior, um dedo a apontar para o estado das coisas. Tal linguagem, que se revela mais a si própria e ao seu segredo íntimo do que revela o "extrínseco", é a poesia.

De algum modo, julgo, o filosofar não reside longe do labor poético. Que procuro eu num texto filosófico? A verdade? Deus me livre. Busco, por um lado, um ângulo, nada mais do que isso; e a quantos mais ângulos tiver acesso (isto é, quantos mais filósofos for lendo), mais a minha visão da realidade se vai multifacetando. Mas, nesse ângulo, em cada ângulo, em cada filosofia, interessa-me a forma como é desenhada. O risco de propor uma interpretação a que não se haviam atrevido antes, mas, de facto, nos interpela e faz pensar.

Há, também, algo de estético, nesta minha apreciação do texto filosófico: como se se tratasse de operar com conceitos e, no domínio dos conceitos, também o filósofo fosse um artista da linguagem, um poeta que, a seu modo, persegue as palavras e os argumentos mais ricos e interessantes para exprimir e justificar uma certa tese. Não peço aos filósofos experimentações nem provas da sua visão: apenas que ela se exponha através de frases que me façam compreender o seu ângulo.

Há, por isso, filósofos que prefiro a outros. Os que se confundem com cientistas, e julgam que a sua actividade deve ser entendido como uma forma de ciência, parecem-me os menos interessantes de todos. E os mais equivocados. Mas em Platão, Kant, Schopenhauer, Kierkegaard ou Nietzche, o que encontramos - tenha ou não que ver com "a" verdade - é poesia e drama: cada texto de cada um deles é sempre libertador, porque, apresentando-nos uma certa tese, numa formulação que não pode deixar de nos tocar, faz-nos seguir, por dentro (e por dentro de nós) a construção da mesma, o seu erguer. Não podemos simplesmente contemplá-la e aceitá-la: temos de a compreender, isto é, de alguma forma, seguir-lhe os passos através do nosso próprio pensar.

E tudo isto me surge a propósito de uma tradução recentíssima de Kierkegaard, que venho de comprar. Não tinha praticamente dinheiro mas, mesmo assim, não resisti. (Acontece-me, com os livros, mais frequentemente do que a minha família consegue perdoar-me...). É Temor e Tremor.

Aconselharia os leitores menos familiarizados com a terminologia técnica da filosofia a prescindir da «introdução». Mergulhem imediatamente no texto: este não carece de enquadramento (a não ser, claro, o de algumas notas), não precisa de uma explicação prévia. Fala por si, e à inteligência de cada um e à de todos nós.

A forma como Kierkegaard se sente fascinado por Abraão e pelo sacrifício que este se propõe fazer, a Deus, do seu próprio filho, Isaac, oferece-nos algumas das páginas mais maravilhosas acerca do que só pode ser visto como um enigma. E um paradoxo. Se me permitem, ao contrário da visão mais estreita de Saramago, que olha a Bíblia de fora, isto é, sem nada querer realmente compreender, reduzindo tudo a uma colecção opaca de actos maus e vergonhosos, o que Kierkegard intui é o drama de um pai que não poderia senão sacrificar o que lhe é mais valioso: o seu filho; mas o contrário não seria igualmente compreensível? Que o amor pelo filho fosse a recusa do sacrifício deste? E pode amar-se um Deus que exige um tal acto? Que múltiplos e intrincados fios os de que se tece a fé, o amor, a paternidade. E que sentidos diferentes as nossas escolhas engendram.

Mais do que uma dívida ao eternamente certo ou errado, Kierkegaard mostra-nos que os nossos actos são escolhidos em face daquilo que valorizamos, e esta liberdade irrecusável, incontornável, tem que ver (para não nos afastarmos dos lugares-comuns que acabamos sempre por dizer acerca do filósofo) com este núcleo terrível, que é a angústia.

E ao ler, não me interessa saber se Kierkegaard tem razão, tal como não pergunto se o poeta a tem. Sigo as linhas e percebo que penetrei num mundo de pensamentos, que se vão estruturando como obras de arte. Que me chamam na medida em que as compreendo, ou vou compreendendo, como se me fosse dado o privilégio de pensar conjuntamente com o autor.
Talvez esteja enganado. Mas nunca pedi mais do que isto à filosofia.

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