sábado, 29 de maio de 2010
ORLANDO VITORINO: MANUAL DE TEORIA POLÍTICA APLICADA
Diz-se, dos cães que comem ervas no jardim onde os leváramos a passear, que o seu organismo instintivamente "procura" aquilo de que tem carência; ou, dos desejos das mulheres grávidas, que obedecem a alguma necessidade orgânica própria do seu estado; lembro-me de um médico que justificava similarmente o facto de uma criança arrancar e comer pedaços de cal de parede.
Talvez alguma carência orgânica, no sentido lato, ligada a uma fase minha de redefinição, esclareça também a forma como o corpo me tem pedido, ultimamente, uma substituição, da habitual dieta de literatura de ficção, por um regime de textos de teoria. Regresso à filosofia, por exemplo, e alguns dos meus últimos posts são disso o sinal: veja-se Kierkegaard e Montaigne. Mas a verdade é que, ainda quando acabam não se tornando leituras tão importantes que mereçam qualquer comentário meu neste blogue, são livros de teoria os que me têm chamado: O Mestre Ignorante, de Jacques Rancière - ou, nos últimos dias, por recomendação de um colega que lhe elogiava a extraordinária clareza das ideias, Manual da Teoria Política Aplicada, de Orlando Vitorino. E, em resumo, não creio que suceda por coincidência.
Para mim, que me considero inequivocamente um homem de esquerda, ainda que distante de cada um dos partidos de esquerda que encontro, o livro de Vitorino é um puxar do tapete sob os pés. Ao longo das primeiras páginas hesitei em prosseguir uma leitura que me irrita e da qual discordo. Mas, depois, principiei a acalmar. Discordo, muito bem: mas irrita-me, porquê? E não sei se a continue ou se a abandone, porquê? Porque tenho medo de que me ponha em causa? De que abale as categorias e as estruturas que me constituem a tradição cultural, sobre a qual construí toda a minha reflexão e consolido as minhas posições?
É verdade que me parece que a perspectiva de Vitorino radica num erro imperdoável, que é o de criticar a visão "socialista" como um todo, com pressupostos idênticos (um dos quais seria a omnipresença do Estado), trate-se de comunismo, nazismo ou fascismo. É um acto de má-fé intelectual não pensar as diferentes finalidades filosóficas e políticas de diferentes sociedades estatistas, como se não houvesse entre elas distinções de natureza que não podemos ignorar - a não ser pagando o preço de considerar como prescindíveis e irrelevantes o sentido filosófico e político das sociedades. Como é certo, por outro lado, que uma doutrina e um sistema políticos se fundem numa antropologia: mas tenho dificuldade em aceitar que não haja senão os dois rascunhos de antropologia que Vitorino sugere: a do homem como espécie, ou ser colectivo, que se esgotaria na sociedade, destituído de qualquer elemento individual (antropologia essa que levaria aos comunismos); e a do homem como indivíduo, livre, criativo e pensador, mas sem qualquer dimensão social, que não a da mera soma, a posteriori, dos indivíduos. Não seria concebível a mediação? Uma antropologia do indivíduo que não desaparece, enquanto tal, no seio do todo e do todo que seja como que a gramática pujante da realização e da liberdade de cada um?
Isto dito, é evidente que a leitura deste livro é uma discussão profícua: uma discussão do leitor com Vitorino e do leitor consigo mesmo. Se é verdade que ser de esquerda passa também pelo enquistamento em quadros mentais que não nos atrevemos a repensar, nem ao menos a questionar (como, aliás, ser de direita), então trata-se de uma leitura inquietante, exigente, no melhor sentido da palavra, que não nos deixa repousar sobre as certezas adquiridas.
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