quarta-feira, 12 de maio de 2010

JORGE LUIS BORGES: O LIVRO DE AREIA

Talvez não seja rigorosamente verdade que esse fosse o primeiro texto que li de Borges. Mas admitamos que sim. O ponto é que, por mais que tente regressar na minha memória, não me lembro de haver outro. Portanto, para todos os efeitos - e para efeitos do mito que, para mim, para a minha consciência e para a história pessoal, me agrada estabelecer -, as circunstâncias desta descoberta e a descoberta propriamente dita foram tão fortes, que nunca poderia ser inteiramente falso afirmar que «esse foi o primeiro texto que li de Borges»...

Vão já compreender. Estava em Paris. Começa bem, não começa? Tinha certamente mais de dezoito anos, talvez quase vinte. Suponho que se trata de uma viagem que fiz com o meu irmão, a expensas suas. Mas, uma vez desaguados na Cidade-Luz, separámo-nos, ele envolvido no trabalho a que fora chamado, eu - livre como um passarinho, sedento, curioso, sorvendo ruidosamente todos os pormenores. Mais: o meu irmão dormia em casa de uns amigos, eu ficava completamente só num quarto de Pensão. Estava maravilhado.

Fui um flâneur. Não tinha horas, nem responsabilidades, nem compromissos. Almoçava onde queria, insistia em regressar ao Quartier Latin, entrava e saía de lojas, descobria a escada rolante - então uma relativa novidade -, perdia-me entre "bouquins" em saldo.

Foi na Gibert Jeune, essa deliciosa livraria de vários andares, de onde se sai levando sacos amarelos, de plástico, com um rosto estampado, suponho que o de Gibert Jeune. E, numa banca, lá estava Jorge Luis Borges - ou seja, não o próprio, mas um livro de contos chamado O Livro de Areia.

O título é fabuloso. Mas, nesse livro, enterrou-se em mim um conto em particular, que não sei - e não vou agora pesquisar - se seria o do mesmo título. Sei que se vai desenvolvendo a propósito de um bardo a quem o rei encomendara um poema onde se cantasse a grandeza do rei e do seu reino. E de três sucessivas tentativas do bardo: as duas primeiras recusadas pelo monarca, a última, a síntese absoluta, expressa numa palavra única. Uma palavra indizível, de novo esquecida a seguir, ou evitada, mas onde os ouvidos que a ouvem conseguem encontrar a vida e a morte, o tempo e a intemporalidade, os grãos de areia e os sons da música, e de todas as músicas, os homens, as mulheres e as crianças, os que faleceram e os que estão vivos ou os que virão a nascer, os olhares, os amores, o mar, o céu, os latidos, os uivos, a tristeza, a alegria, a saudade, os animais, as escritas que se inventaram e não subsistiram, as letras que compõem todos os textos já escritos ou por escrever e, portanto, num ponto do futuro antevisto, também as letras com que redijo este post, e o post, e o computador em que o escrevo, e os dedos com que o escrevo, a partir de um corpo e de uma consciência que são o que me forma a mim mesmo escrevendo-o, bem como os olhos dos leitores que o virão a ler - e repare-se no maravilhoso desfasamento que há entre o tempo em que bato nas teclas, sem quaisquer leitores, e o tempo em que tu, leitor, estarás lendo o que escrevi: estás aí agora, leitor? É o teu presente!? Estás lendo estas linhas que, no momento em que as lês, eu já não estou escrevendo, sendo que talvez já me tenha ido embora, e podendo até ser que neste momento em que me lês eu já não seja eu, já nem sequer exista?

Podem imaginar a sensação de pertubador fascínio com que, à noite, a sós no meu quarto de uma Pensão, com a janela entreaberta para uma rua movimentada, talvez com a televisão ruidosamente ligada em fundo (mas não garanto...), devorei esse conto - e, depois, todos os outros? A vertigem de infinito e totalidade que me fez quase desmaiar? A intuição da loucura próxima, se me quisesse deixar enlouquecer por aí fora?

Não devo errar por muito. A exactidão dos factos é um mero pormenor. Se esse não foi o meu primeiro Borges, será, daqui para diante, o meu primeiro Borges.

1 comentário:

Ana Catarina disse...

Ana,ainda estais aqui? - sim,ainda estou por aqui.
E gostei de te ler, mesmo sabendo que possas não estar mais aí.
Ana Catarina