segunda-feira, 3 de maio de 2010

V. S. NAIPAUL: UMA CASA PARA MR. BISWAS



Já sabíamos que todos os livros - ou autores - têm um tempo certo para que com eles nos cruzemos. Ando há muitos anos em busca do momento ideal para me atirar a Ulysses, por exemplo. O do James Joyce. Todas as minhas tentativas foram inúteis, mas acredito que um dia ele consiga ensinar-me a lê-lo, levando-me pelas suas páginas adentro.

Quem diria, contudo, que há também um "tempo certo" para falarmos acerca deste ou daquele livro que lemos?
Em alguns casos, deverá ser imediatamente após a leitura, enquanto ainda nos sentimos contagiados, numa urgência desatinada, uma espécie de excitação febril, uma incapacidade de espera.
Em outros, pelo contrário, carecemos de uma digestão prolongada, como a jibóia, deixando que a transformação interior se vá fazendo, as raízes se fortaleçam, a reflexão se apure.

Comigo, sucedeu algo estranho a propósito do tempo necessário para me referir a V.S. Naipaul.
Desde a inauguração deste blogue que o pressinto no horizonte, como uma promessa feita a mim próprio. Mas a verdade é que adiei sempre o post que gostaria de dedicar ao primeiro livro que li da sua autoria (e, de todos os que fui descobrindo, aquele que me falou mais alto): Uma Casa para Mr. Biswas.

Os escritores indianos de expressão anglo-saxónica (embora Naipaul seja um indiano nascido na Trinidad) estão, se isso pode constituir um critério, entre os meus predilectos. Encontro, na forma como escrevem - nos temas, nas descrições, na linguagem, no humor -, uma duplicidade a que não sou indiferente e que atribuo ao confronto entre as culturas que os influenciaram, que os fizeram. A respiração de uma religiosidade profunda, um paganismo exuberante e riquíssimo, por um lado, e a disciplina e o rigor britânicos, por outro lado, ou aquele leve distanciamento irónico que passa tão depressa por arrogância, chocam-se num casamento improvável, quase paradoxal, mas com excelentes frutos.

E, deste ponto de vista, Uma Casa para Mr. Biswas é um romance imperdível. Adiei o meu possível texto, talvez porque o livro em causa se encontrava já longe, porque marcou, sem dúvida, uma etapa no meu crescimento como leitor, mas nunca mais o reli: porque o fascínio se transformara mais na memória de um fascínio do que outra coisa; em suma, porque ainda não chegara o tempo certo para o partilhar. (Ou porque esse tempo já tinha passado...).

Mas à volta de uma casa, e da importância que a ideia da casa onde viver e morrer adquire para a sua personagem, Naipaul constrói uma história que desce ao nascimento e à infância daquela, na sua luta solitária e permanente contra tudo e todos: o destino, a família, os vizinhos, o professor, os colegas...

E perante o leitor move-se o absurdo de um mundo e de uma vida em que todos são um pouco ridículos. Em todos os casos, o ridículo nasce de uma desadequação entre a grandiosidade do discurso (de alguém que assume o papel de pai, ou o de um professor, ou o de um santo hindu...) e o impulso egoísta e mesquinho que, efectivamente, mobiliza aquelas pessoas, e o papel e o discurso de cada uma não faz senão mascarar.

É um livro sem concessões e politicamente incorrecto. Um olhar desapiedado se projecta sobre os homens. O povo é sempre, entre a miséria e o sacrifício, pouco digno, pouco respeitável. Espantou-me que o Nobel, habitualmente tão preocupado com a "adequação" dos premiados, tivesse, num certo ano, perdido a cabeça. Não encontramos, em Naipaul, nenhuma "correcção", nenhuma cartilha de virtudes subjacente ao modo como toca nas personagens: nenhuma se limita a ser um boneco para veicular teses; nada de proselitismo. Apenas o mergulho nas contradições humanas, na insuficiência moral, na mesquinhez religiosa ou política. Não há bons, não há maus. Unicamente a massa de que somos feitos, tratada com algum cinismo e um humor eficaz, numa escrita que, não deixando, aparentemente, pedra sobre pedra, deixa precisamente o brilho de uma casa: ou seja, da força de um sonho (o de ter uma casa) contra o destino.

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