O conhecimento que tenho de uma grande parte da obra de Somerset Maugham e o prazer com que a ela continuamente retorno são dos principais legados da minha mãe. É-me sempre grato, ainda hoje, ouvi-la contar (e voltar a contar) os enredos. Lembro-me, nos mínimos pormenores, das histórias que me narrava em criança: ao Capuchinho Vermelho ou à Branca de Neve, preferia o evoluir mais complexo dos livros que ia lendo, e Somerset Maugham foi sempre o seu autor predilecto, pelo que, oralmente, a minha familiaridade com os romances deste autor terá principiado relativamente cedo.
Minha mãe, de resto, tem toda a razão. Pegamos numa novela menor de Maugham, Um Casamento em Florença, por exemplo, e percebemos como, até quando alguém escreve sem outro intuito que não o de divertir-se e divertir o leitor, a qualidade, se existe, é indisfarçável - apesar dos erros, das coincidências, da ausência de rigor, da displicência...
E quando um autor que se dá ao luxo de ser muitas vezes displicente é, mesmo assim, extraordinário, imaginem o que sucede quando se decide entregar convictamente ao trabalho, com uma ideia forte, personagens interessantes, espírito de observação, originalidade.
Nem precisaria de se tratar de um romance: Somerset Maugham é, aliás, dos mais apurados escritores de "contos" que conheço, e um conto não é um romance imperfeito nem mais magrinho, não é um texto incompleto ou resumido, mas uma forma própria, porventura mais difícil, com um ritmo especial e uma orquestração do tempo e da tensão muito particulares, que ele domina magistralmente. A Chuva é incomparável, e de uma intuição psicológica agudíssima.
A minha mãe, todavia, escolheria Servidão Humana e O Fio da Navalha. Compreendo-a. Servidão Humana é a história de Philip Carey, um jovem extremamente inteligente mas com uma deficiência que o marca e complexa nas suas relações com o mundo em geral e com as mulheres em particular. E Mildred, uma mulher de "baixa extracção social" (ah, parece-me estar ouvindo esta expressão à minha mãe...), entrar-lhe-á na vida, capaz de o usar, abandonando-o e regressando sucessivamente, estragando-lhe todas as relações entretanto iniciadas, segura de que ele lhe perdoará e aceitará tudo, a prepotência, o desamor, o desprezo, numa dependência sem limites. É um romance amargo, que penetra o âmago da psicologia do homem, das relações, da frieza e da servidão. É de uma intensidade e de uma profundidade inesquecíveis.
De facto, as personagens de Somerset Maugham são inquietantemente próximas de nós. Reconhecemo-las. Conhecemo-las bem, no fundo. Exasperam-nos, embora raramente sejam más ou de uma temível perversidade: apenas demasiado fracas ou excessivamente fortes, criando, nessa desigualdade, a relação errada e doentia; apenas obsessivas e tristes, perseguindo sonhos ridículos. Apenas como nós, vistas a uma luz que nos permite compreendermo-nos melhor, mas nem sempre nos redime. Mas que, ainda assim, ainda que nem por isso nos salvemos, temos de ler.
4 comentários:
Pacheco,
Terminei de ler o livro, divino...Philip, vive tantas dores, em busca de entender o sentido da vida. O que ficou, prá mim?? A semelhança de tais situações vividas nas personagens miseráveis que ele encontra ao longo de suas visitas como médico... Acima de tudo a bondade, virtude impar nesse grande homem Philip... Eu simplismente me apaixonei!!!! Porque a vida só tem sentido para quem vive, viver é a coisa mais dífícil!!É quase beijar a morte!!!Morrer e nascer a cada dia!!!
Ana Lucia Lopes Meira
Ana Lúcia, obrigado pela sua visita. Vou espreitar o seu blogue, estou muito curioso. Apareça sempre!
Não consigo encontrar. Ainda não está pronto?
Pacheco,eu não tenho Blog,mas estou no facebook,caso você tenha me adicione. Ah,Vou aparecer!
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