quinta-feira, 1 de setembro de 2011
KURT VONNEGUT: MATADOURO CINCO
A primeira referência que tive de Kurt Vonnegut foi esta. O nome «Vonnegut» não fazia, até então, parte da minha galáxia. Pesquisei ao de leve, cheguei a folhear mas, para ser sincero, o dinheiro coloca-me sempre inúmeros dilemas e, na altura, estava mais empenhado em outros autores. Fiz mal.
Descubro Vonnegut agora, em face de uma tradução portuguesa a que não resisti. E que dizer? Lembro-me de que o Homem de Fraque mo sintetizava como um escritor de ficção científica que parte da banalidade quotidiana americana dos anos sessenta, sem naves supersónicas nem sabres de luz. (Não que eu tenha algo contra as naves supersónicas ou os sabres de luz). E esta síntese tão simples e tão precisa esgota um terço do que eu poderia dizer acerca de Vonnegut.
Mas a questão é que esta geração extraordinária de autores norte-americanos dos anos cinquenta/sessenta (em que incluo, obviamente, o meu adorado Salinger), que, de um ou de outro modo, sofreu o horror da Segunda Grande Guerra, partilha uma linguagem capaz de exprimir um ponto de vista comum: ou a de um jovem desamparado (Salinger) ou a de um cidadão vulgar (Vonnegut); e esse tom simples, coloquial, despido de retórica - se ignorarmos o facto de que reconstituir essa linguagem é, em si, um empreendimento retórico de grande fôlego - provoca um efeito inesperado, atordoador, propiciador de uma empatia indefinida. E, durante o tempo da leitura, cremos que estamos ou diante de um jovem, com a sua indignação e os seus palavrões, ou diante de um sujeito um pouco cretino, cujas confissões nunca entendemos até que ponto são um puro exercício de delírio, ou a revelação autêntica do contacto com seres extra-terrestres.
Juro-vos: a escrita de Vonnegut é absolutamente deliciosa, no seu despojamento próprio de um rascunho, que evita descrições ou desenvolvimentos exaustivos. Em breves apontamentos, relata-nos a história de Billy Pilgrim, o qual, durante a guerra, foi feito prisioneiro pelos alemães (e assiste à destruição de Dresden, como aconteceu com Vonnegut himself), e mais tarde, de regresso a Ilium, ao emprego, à noiva, casando, tendo filhos, sofrendo um acidente e, por fim, a morte da mulher, «intoxicada por monóxido de carbono. E é assim», acaba revelando que, desde há algum tempo, mantinha contacto com os habitantes do planeta Tralfamadore.
Que pensar da loucura de Billy Pilgrim? Que pensar desta visão absolutamente nova do tempo e da morte, que os tralfamadorianos lhe haviam ensinado? Que pensar da sua volubilidade ao tempo, que lhe permite viajar, subtrair-se ao presente, reinscrever-se num fluxo contínuo onde nada verdadeiramente começa e coisa alguma tem de facto fim?
Nuno Júdice afirmava categoricamente, num livro cujo título suspeito é ABC da Crítica [como se fosse possível resumir todo o trabalho de crítica literária às regras estanques de uma espécie de manual], que nunca se deve falar acerca do livro antes de o ter lido na íntegra. Parece óbvio. Curiosamente, é uma regra que não sigo: começo a escrever no ponto exacto da leitura em que sinto que o livro me tocou e inspira, como se houvesse uma espécie de urgência e qualquer adiamento fosse impossível e criminoso. Que eu depois mude de ideia - aconteceu-me -, que tenha acrescentos importantes, que tenha falado de mais, ou de menos, nada disso é grave. Em última análise, uma crítica pode ser totalmente rescrita a seguir - mas parece-me importante iniciá-la no ponto certo de ebulição. Não concluí a leitura de Matadouro Cinco. Mas já sei o que vale - e não me apetece esperar mais para vo-lo dizer...
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