terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

LAWRENCE DURRELL: QUARTETO DE ALEXANDRIA




Neste tempo em que o Egipto tem sido palco de uma tão conturbada exaltação, dou por mim a conversar com amigas acerca de Alexandria. Falam-me desta, elas, que a conhecem, como sendo uma cidade muito bela, ainda que de uma beleza em que a pobreza e a degradação vieram deixando terríveis sinais. E tento mostrar-lhes o que Alexandria - em que nunca estive - significa para mim.

Paro um instante para tentar aperceber-me dos contornos e da história da «minha» Alexandria. Por que tenho tão vívido no espírito, como uma evidência inata, este lugar por experimentar? Kaváfi, é claro, terá sido um dos responsáveis por tão insólita saudade a propósito de uma cidade que não vi; mas Kaváfi é uma descoberta recente: antes ainda de haver lido o poeta, Alexandria já me chamara pela voz de um outro: Lawrence Durrell, que lhe dedicara uma das obras mais complexas e difíceis, labirínticas, ousadas e terríveis: O Quarteto de Alexandria, em 4 volumes (Justine, Balthazar, Mountolive e Cléa).

O Quarteto de Alexandria
, inspirado, ao que parece, na teoria da relatividade, é uma obra em que se apresenta uma mesma realidade, ou seja, um único conjunto de factos, mas segundo diferentes perspectivas. Há uma primeira visão estática, fragmentária, em que as personagens e as situações nos são expostas como numa composição, como numa estrutura imóvel. Não existe tempo, não se percebe o que ocorreu «antes» ou o que ocorreria «depois»: observamos aspectos que se articulam num todo coerente, e que vamos abarcando à medida que subimos ou descemos o nosso olhar ao longo de um plano - de um quadro em que nada progride ou se modifica interiormente.

De algum modo, cada um dos novos volumes vai introduzindo uma outra perspectiva - quer porque é a perspectiva de uma outra pessoa (após Justine, no primeiro volume, virão falar Balthazar, Mountolive e, por fim, Cléa), quer porque, em cada casa (pretendia escrever «caso», mas o lapso enriquece o sentido) em cada "casa" estamos perante uma nova chave de apreensão dos acontecimentos: só no último volume essa chave é o tempo. Projecto gigantesco, megalómano mas conseguido, constrói-se como um monumento que usa uma substância uniforme; voltado sobre si - insisto: trata-se sempre da apresentação de um mesmo conjunto de factos -, repetindo, pois, volume após volume, o que já conhecíamos segundo um olhar diferente. E é, no entanto, sempre novo e fascinante. Não podemos deixar de nos perguntar: como se faz uma obra assim? Imensa, extensa mas articuladíssima, sem falhas: tão próxima e tão distante de Em Busca do Tempo Perdido...

Releio este post e sinto-me quase indignado pela reflexão, que lhe subjaz e se fica por um encantamento intelectual em torno de uma técnica, quando o romance de Durrell possibilita, mais do que tudo, o rasgar de cortinas sobre as emoções de pessoas desamparadas, num perpétuo desencontro entre o Ocidente e o Oriente, que é, em parte -mas uma grande parte - a razão de como eu vejo essa Alexandria que nunca vi.

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