O Discurso do Método, que me não lembro quando li pela primeira vez, mas não foi certamente no liceu - os professores de filosofia não convidavam à leitura dos textos dos filósofos; escondiam-no-los bem... -, é, sem dúvida, uma obra extraordinária.
É verdade que a argumentação de Descartes nem sempre se mostra inatacável. Nada na progressão do seu raciocínio parece, realmente, «indubitável». Algumas das ideias que apresenta como «evidentes» são, bem vistas as coisas, muito pouco evidentes. O pendor para a falácia respira asmaticamente em cada página. A segunda prova da existência de Deus, por exemplo, é uma falácia tão berrante como certas gravatas são berrantes. E, claro, à sua contenção more geometrico prefiro mil vezes a subtileza dos pensamentos de um Pascal. Tudo isto dito, mantenho a afirmação com que iniciei o texto: trata-se de uma obra extraordinária.
Há, em Descartes, uma candura que só Kant porá consequentemente em causa. Essa candura, curiosamente, é-me agradável, refrescante, como se fosse possível esperarmos que o pensamento se baste a si próprio, que encontre, no seu interior, todas as peças e ferramentas para «montar» a verdade: como certos produtos que compramos no IKEA.
Agrada-me essa frescura própria de quem não sofreu demasiado. A filosofia de Descartes permite uma leitura em que suspendemos as nossas crenças. Do mesmo modo que eu não creio no inferno, mas não posso deixar de crer plenamente no inferno enquanto leio Dante; da mesma maneira que sei que o som não se propaga no vácuo, mas isso não me impede de acreditar nas naves que se deslocam, veloz e ruidosamente, nos vazios do universo, em Star Wars; da mesma maneira que sei que o pequeno «Marcel», de Em Busca do Tempo Perdido, não é, de facto, Marcel Proust (não é ninguém a não ser uma personagem-que-recorda-e-narra, uma ilusão falante), mas, no entanto, a sua existência física não está em causa durante a leitura da obra - também, quando leio o Discurso do Método, me sinto tranquilo e confiante na força do pensar. Percebo as dúvidas mais excêntricas que o assolam. (Mesmo esta: que o mundo que vejo ou cheiro ou toco possa não existir a não ser como engano ou sonho). E sinto-me deliciado pelo engenho com que ultrapassa essas dúvidas. Claro: ao fechar o livro, meditando, descubro as falhas, as fragilidades, as arestas, as falácias, o delírio, a mentira até. Mas, regressando à leitura,torno a sentir-me em casa: na casa do pensar.
Não sei se é esse conforto que se espera de um filósofo, se o contrário. Nietzsche dá-me precisamente o contrário. Sempre. Mas Descartes recebe-me muito bem; acolhe-me com uma desusada hospitalidade: não poderia enjeitá-lo.
É verdade que a argumentação de Descartes nem sempre se mostra inatacável. Nada na progressão do seu raciocínio parece, realmente, «indubitável». Algumas das ideias que apresenta como «evidentes» são, bem vistas as coisas, muito pouco evidentes. O pendor para a falácia respira asmaticamente em cada página. A segunda prova da existência de Deus, por exemplo, é uma falácia tão berrante como certas gravatas são berrantes. E, claro, à sua contenção more geometrico prefiro mil vezes a subtileza dos pensamentos de um Pascal. Tudo isto dito, mantenho a afirmação com que iniciei o texto: trata-se de uma obra extraordinária.
Há, em Descartes, uma candura que só Kant porá consequentemente em causa. Essa candura, curiosamente, é-me agradável, refrescante, como se fosse possível esperarmos que o pensamento se baste a si próprio, que encontre, no seu interior, todas as peças e ferramentas para «montar» a verdade: como certos produtos que compramos no IKEA.
Agrada-me essa frescura própria de quem não sofreu demasiado. A filosofia de Descartes permite uma leitura em que suspendemos as nossas crenças. Do mesmo modo que eu não creio no inferno, mas não posso deixar de crer plenamente no inferno enquanto leio Dante; da mesma maneira que sei que o som não se propaga no vácuo, mas isso não me impede de acreditar nas naves que se deslocam, veloz e ruidosamente, nos vazios do universo, em Star Wars; da mesma maneira que sei que o pequeno «Marcel», de Em Busca do Tempo Perdido, não é, de facto, Marcel Proust (não é ninguém a não ser uma personagem-que-recorda-e-narra, uma ilusão falante), mas, no entanto, a sua existência física não está em causa durante a leitura da obra - também, quando leio o Discurso do Método, me sinto tranquilo e confiante na força do pensar. Percebo as dúvidas mais excêntricas que o assolam. (Mesmo esta: que o mundo que vejo ou cheiro ou toco possa não existir a não ser como engano ou sonho). E sinto-me deliciado pelo engenho com que ultrapassa essas dúvidas. Claro: ao fechar o livro, meditando, descubro as falhas, as fragilidades, as arestas, as falácias, o delírio, a mentira até. Mas, regressando à leitura,torno a sentir-me em casa: na casa do pensar.
Não sei se é esse conforto que se espera de um filósofo, se o contrário. Nietzsche dá-me precisamente o contrário. Sempre. Mas Descartes recebe-me muito bem; acolhe-me com uma desusada hospitalidade: não poderia enjeitá-lo.
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