Jorge de Sena era um homem pouco linear: o seu retrato teria de ser traçado no claro e escuro das melhores qualidades e dos mais sórdidos defeitos. Num certo sentido, a própria obra reflecte esse desequilíbrio ético, podendo ir de um livro infame, editado na íntegra (penso que pela primeira vez), Dedicácias, verdadeiro concentrado de invejas, ressentimentos e ódio ao próximo ou ao brilho do próximo, até, no outro extremo, um romance tão extraordinário como Sinais de Fogo.
Já em mais do que um post me referi a essa espécie de admiração, nos dois sentidos da palavra, que não consigo ev
itar em face de autores de obras únicas mas imediatamente geniais. Em Portugal, existem estes dois casos flagrantes: David Mourão-Ferreira que, se escrevera poesia, se escrevera contos, nunca se tinha aventurado por um romance: e quando escreveu um, caraças!, logo haveria de ser o surpreendente Um Amor Feliz, tão bem urdido na sua progressão, com algo de um policial que não é, e tão longe da grosseria ou do preconceito a que o poderia ter arrastado o tratamento dos sentimentos inquietos e ambíguos associados a um amor secreto, todo feito de culpa, separações e distanciamento físico.O outro é, precisamente Sinais de Fogo, de Jorge de Sena. (Do meu ponto de vista, O Físico Prodigioso, também da sua autoria, não é propriamente um "romance").
Sinais de Fogo é uma obra maior da literatura portuguesa: lembro-me perfeitamente da primeira página, muito bem escrita, absoluta reveladora da mestria (rara) de prender o leitor desde as primeiras linhas. (Há tantos romances aos quais só falta, quase, para a perfeição, o dom da primeira página, das primeiras linhas...). O espírito de observação de Jorge de Sena tem qualquer coisa de cinematográfico; note-se a descrição de pequenos gestos e pormenores: Repare-se, entre centenas de possíveis exemplos, neste, tão simples e tão eficaz, que nunca esqueci, de um jovem que, saindo de uma escaramuça, manifestando, ainda em altos brados, a sua indignação, vem "enterrando" as fraldas da camisa por dentro das calças.
Esse romance tem como eixo o Verão de 1936; a Guerra Civil de Espanha será, na economia do texto, o elemento do despertar do
protagonista para a política. Mas, neste "despertar", é à formação total do jovem que assistimos, na sua descoberta do amor, da sexualidade (e da homossexualidade), da revolta - e, já agora, da poesia: e essa formação é, ao mesmo tempo, uma "iniciação", entre dúvidas e medos, entre o interdito e o desejado, entre sinais que o marcam, e o destroem no que era, reconstruindo-o no que irá sendo.Há páginas que nos marcam definitivamente: algumas são de uma violência implacável, terrível. De algum modo, estamos pisando um território em que as certezas morais são completamente abaladas. O Bem e o Mal tornam-se o elemento de um dilema e de um conflito permanentes, em que são averiguados, e testados, num pôr em causa dos ditames de que a geração anterior o haviam imbuído.
A juventude é, precisamente, isso: tudo se experimenta, e de toda a experimentação se vai fazendo o adulto que seremos. E nessa compreensão de um tempo de mudança e crise, Sinais de Fogo é um livro inesquecível.
3 comentários:
A mim espanta-me é condenarem Jorge de Sena por uma coisa que nunca fez, dar para publicação as Dedicácias. Já era só ossos quando, passados treze anos, lhe publicaram as primeiras diatribes sem que - friso mais uma vez - pudesse ter dado autorização para isso. Porque ESTAVA MORTO. É um direito de todos escrever para si mesmo, tal como o é pensar. Gostaria (ou não)de ler o pensamento de cada um acerca dos seus ódios de estimação. Estes moralismos de sacristia desesperam um santo.
Bem, é verdade. Embora do "pensar" ao "escrever", mesmo que para si, vá um grande passo: e, sobretudo, quando se trata de escrever tão cuidada, poética e diligentemente os seus insultos, o seu desprezo, o seu ressentimento.Não nego a ninguém o direito de o fazer, pode é custar-me ver que um espírito tão elevado seja capaz de tamanha concentração de sentimentos negativos em relação ao próximo. Qualquer das maneiras o meu post, escrito no escuro beato da sacristia, tinha unicamente o intuito de chamar a atenção para a grandeza de Sinais de Fogo. O resto é paisagem. Vale o que vale.
A mim, o que impressiona, é a confirmação (anónima, no caso) de que certas figuras têm de ser por força intocáveis. Dizer de um livro que, na revelação daquilo que revela, é infame - embora, vá lá!, a elaboração dessa poesia seja um pouco mais do que "pensar" ou "escrever para si", hum..? - é moralismo barato e bacoco. Sim senhor. O livro está, portanto, antecipadamente imune a qualquer crítica: Jorge de Sena NUNCA O DEU PARA PUBLICAÇÃO!
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