quinta-feira, 1 de abril de 2010

HÉLIA CORREIA: ADOECER


Tenho um inexplicável e perverso fascínio por talentos desaproveitados. Homens como Fialho d'Almeida, por exemplo, ou Manuel Laranjeira, de quem se esperava tanto, cuja criatividade e qualidade de escrita prometiam obras de fôlego maior mas, em vez disso, acabaram por se dispersar em pequenos artigos, alguns contos, poesia, cartas, extraordinários, é verdade, mas aquém do que nos ofereceriam se se dedicassem. Essa preguiça de certos génios é um aspecto que me interessa neles. Porque, num certo sentido, é talvez também a ela mesma, a um certo temperamento ocioso e pouco esforçado, que se deve a sua imaginação, a sua facilidade, o seu poder criativo, pouco paciente para constrangimentos ou esforços, seguindo unicamente o seu ritmo e o seu tempo. (Nem sempre, portanto, contrariamente a um lugar comum democrático mas oco, o génio consiste em dez por cento de inspiração e noventa de transpiração!)

É um pouco assim - desculpem-me se sou injusto - que vejo Hélia Correia. Tudo o que escreve se lê como se fosse uma renda subtil de ideias; há uma poesia nas palavras que surpreende e se frui com o verdadeiro deleite da leitura. Poderia dar, como exemplo que imediatamente me ocorre, esta descrição que ela faz da carne, do corpo portugueses (descrição, aliás, pouco lisonjeira mas indiscutível) como sendo «uma composição de sol e enchidos, subserviência e fantasia». Até na ligação entre uma palavra agradável e uma desagradável, duas a duas (o sol ajustando-se desadequadamente aos enchidos, a subserviência à fantasia), se formula um certo modo de ser que nos é bem familiar, com uma notável pontaria e, apesar de tudo, uma beleza estranha e perversa. Mas, porque tudo o que Hélia escreve tem, precisamente, esse dom da maravilha, ocorre que nos deixa com água na boca. Tanto mais que longos lapsos de tempo separam os seus romances, em geral curtos, como se tamanha inspiração a fatigasse...!

Neste, que vem de ser editado e se chama Adoecer (291 páginas, contra o seu hábito), trata-se dos pré-Rafaelitas e, mais concretamente, de Elizabeth Siddal: e é vertiginosa a identificação entre a autora e o seu objecto, sobre quem afirma: «Na verdade, conheço esta mulher. Não a criei. Sei mais a seu respeito do que sei sobre as minhas personagens. Pisei já muito chão que ela pisou, toquei em coisas onde teve as mãos. De algum modo, as nossas vidas já se confundiram [...]» - identificação, na verdadeira acepção da palavra, como se se tratassem do duplo uma da outra, que levou Hélia Correia a uma minuciosa pesquisa (apesar de, em uma nota final, a autora recordar que estamos perante personagens que tiveram uma existência real, tendo havido, todavia, «liberdade criativa e não apenas na efabulação como também na localização de certas ocorrências»), que lhe permitiu reconstituir uma sociedade e uma comunidade; uma época e uma atmosfera cultural: em suma, o génio dos pré-Rafaelitas crescendo colectivamente, multiplicando-se em diferentes áreas, inovando, renovando em todas (mesmo que à custa de uma criativa regressão no tempo).

O que quer que eu pudesse acrescentar não teria a menor utilidade (a não ser que fosse um conjunto de informações sobre Elizabeth Siddal ou sobre os Pré-Rafaelitas) e, sobretudo, nunca substituiria ou, sequer, daria longinquamente conta do prazer que é ler qualquer período deste romance sobre a incompreensível paixão que, com a força de um destino trágico, reúne Elizabeth Siddal e Dante Gabriel Rossetti. Que melhor modo de concluir, portanto, este comentário, que não citando uma mera frase? Qualquer uma - para que a leiam, a sintam, como antegosto, como exemplo concentrado do que é a experiência da leitura de Hélia Correia?

Algo, simplesmente, como isto:

«Erguendo os olhos para a subida, vejo que a hostilidade do lugar levanta, exactamente como um nevoeiro.»

E isto basta! (Mas não nos basta, eu sei).

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