sábado, 13 de março de 2010

FERNANDA BOTELHO: DRAMATICAMENTE VESTIDA DE NEGRO



Um título é muito importante. Corrijo: é fundamental.
Trata-se da parte da obra a que temos imediata e publicamente acesso, isto é, antes de a tornarmos unicamente nossa; mais: trata-se da pele - daquela superfície a partir da qual decidimos se, de facto, vale a pena tornar unicamente nossa a substância. (Comprar, levar, abri-la e amá-la).

Livros há que poderíamos comprar mesmo que não soubéssemos nada acerca deles. Só porque o título enuncia um programa que nos fisga. Ou porque nos surpreende admiravelmente. Um exemplo do primeiro caso: O Homem sem Qualidades. Um exemplo do segundo: Ó.

Acerca de Fernanda Botelho, tenho uma história para contar que tem que ver com a forma como o título é, muitas vezes, a antecâmara a partir da qual nos entusiasmamos, ou permanecemos indiferentes, ou nos afastamos.
Antes de conhecer a sua obra, ocorreu, com esta, o meu primeiro contacto sob a forma de um título que me caiu nos olhos: Esta Noite Sonhei com Brueghel. E, apesar de gostar tanto da pintura de Brueghel, odiei de tal forma o título, pedante na sua remissão directa, gratuita e excessiva para a cultura e para a sofisticação, que se começou a elaborar então, inconscientemente, o meu preconceito contra Fernanda Botelho.

Nós somos assim. Eu sou: imponderado, com ideias calcificadas por causa de algum rumor ou de algum título que me tenha caído mal, ou de uma frase, ou de uma interpretação pouco cuidada. Redime-me, de certa forma, a capacidade para, quando o destino me apresenta uma segunda oportunidade, repensar o que já parecia enraizado, rever o que vira precipitadamente, reconstruir a perspectiva, acabar apaixonando-me, se for caso disso, pelo que, num início errado, começara por detestar ou desprezar.

Assim sucedeu comigo como leitor de Fernanda Botelho. Felizmente, graças a um outro título: Dramaticamente Vestida de Negro. Há, neste, qualquer coisa que fascina: o apelo de um segredo ou de um mistério, como se se tratasse de uma novela policial, o apelo de uma dimensão sombria ou, pelo contrário, histérica, como se o «dramaticamente» do título evocasse uma representação cabotina e excessiva, um qualquer "overacting".

O meu amor pela obra de Fernanda Botelho tem, depois de uma falsa partida, esse maravilhoso recomeço. Porque Dramaticamente Vestida de Negro é um romance maior acerca da solidão e da idade, com uma construção cerebral, que se observa na "gestão" (palavra horrorosa, reconheço!) que a narradora faz do que quer ir contando ao leitor, de modo que haja sempre um veio que não descobrimos senão no momento certo; mas, ao mesmo tempo, essa construção cerebral, friamente calculada para nos ir surpreendendo, não abafa a emoção - e esse equilíbrio entre o pensamento e a sensibilidade, a que, como sabemos, toda a literatura deve tender, porém, na prática, só os grandes escritores conseguem realizar, fez-me, como um cientista que houvesse descoberto um dos pilares do universo, procurar e ler, um a um, todos os romances de Fernanda Botelho. De alguns, gostei menos. (A Gata e a Fábula não veio a ser um dos meus preferidos). De outros, gostei muito. (Acho primoroso Lourenço é Nome de Jogral, mau-grado algum cepticismo em relação ao título). Mas, de nenhum, gostei ou gostaria tanto como de Dramaticamente Vestida de Negro: Ah! Os primeiros amores. Os amores que nenhum outro substituirá...

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