terça-feira, 9 de março de 2010

NUNO RAMOS: Ó

A EXPECTATIVA.

Este era o livro impacientemente aguardado. O mais ansiado durante os últimos meses. Por que razão? Oh, por várias: porque devo reconhecer que pouco conheço de entre os novíssimos da literatura brasileira, e me mantenho curioso; porque todas as abordagens, em que ia tropeçando, feitas a esta obra - Prémio PT em Novembro de 2009 -, davam conta de uma certa perplexidade em relação ao género: de que se tratava exactamente, afinal? Não tanto um romance, não crónicas também, nem contos, nem propriamente ensaios, mas algo que se representaria num cruzamento dessas possibilidades, sem se acantonar especificamente em nenhuma, sem se esgotar em qualquer delas, antes fluindo entre categorias, numa recusa de limites pré-fabricados; porque me remetiam explicitamente para Proust e Montaigne, dois escritores que admiro: só o facto de que um autor contemporâneo os conheça e os reivindique como mestres constitui, do meu ponto de vista, um ponto a seu favor. E, «last but not the least», porque tive a oportunidade de debicar algumas entrevistas concedidas por Nuno Ramos - em jornais, revistas, na rádio - e, de todas as vezes, deparei com um homem tímido, perspicaz e sensível.
Era este, portanto, o meu estado. Por causa de tal estado, aliás, não foram poucas as vezes que entrei, ultimamente, em livrarias, só para perguntar: «Já tem Ó?». (É o título da obra). E devolviam-me sempre a pergunta: «Ó?!», sem saber se eu estaria a brincar.
Finalmente, confesso, a publicidade e o marketing terão tido o seu papel no desencadear do meu interesse. Não tanto o isco do prémio - borrifo-me para as obras premiadas -, mas a atmosfera de estranheza que envolvia o livro, a começar pelo extraordinário título.

O OBJECTO QUE FOLHEIO

Tenho-o, por fim, nas minhas mãos. É um objecto de culto. A capa é discreta, as folhas cheiram agradavelmente. Mergulho todos os meus sentidos neste livro. E, para dizer a verdade, até a cadência da sua escrita no português do Brasil, familiar e distante, me comove e retém.

A PERPLEXIDADE

Perceberam que o livro me vem encantando. Entendo a perplexidade, embora, em rigor, essa diluição e dispersão por todas as formas possíveis não seja uma novidade. Carlos de Oliveira, por exemplo, em Finisterra, procurava já, um pouco, o mesmo tipo de libertação da voz, embora mantendo um fio condutor vagamente romanesco. Mas também Herberto Hélder, em Os Passos em Volta, usa de um pendor similarmente flutuante e desobediente, ao longo da construção de textos que, sendo um pouco de tudo, entre a poesia e a reflexão filosófica, a evocação ou a narrativa, nunca são definida e definitivamente coisa alguma.
Na obra de Nuno Ramos há qualquer coisa de jogo. Ora se, como lembra Nietzsche, para uma criança o jogo é a coisa mais séria do mundo, aqui, pelo contrário, ao distanciar-se leve, leve, muito levemente do seu próprio jogo, o que Nuno Ramos vai urdindo torna-se um saboroso exercício de ironia. Ao mesmo tempo, de mitologia: da mesma maneira que, ao criar a figura do Bom Selvagem, Rousseau nos previne que a não devemos entender como um facto histórico, mas como um "mito", cuja função seria heurística, mais para nos ajudar a pensar e a compreender do que para nos informar, também em Ó a figura (entre outros exemplos) da comunidade silenciosa, sem linguagem, em face dos primeiros homens a usar a fala, serve sobretudo para um irónico testar de hipóteses com que não nos comprometemos, uma criação de ideias e de conceitos, o engenhoso explodir de possibilidades que sejam clarões, aventuras e risos do acto de pensar.

A DESCOBERTA DE Ó: A INTIMIDADE

Pelo que a leitura de Ó tem, realmente, qualquer coisa de aventura. A surpresa é constante. A felicidade da formulação deixa-nos sem fôlego. Principia assim: «Meu corpo se parece muito comigo, embora eu o estranhe às vezes.». E mesmo que este corpo possa ainda ser um corpo ficcionado, só longinquamente aparentado com o corpo real do autor, a verdade é que o modo como é exposto cria, no texto, um elemento de intimidade que ora nos choca, ora nos comove, mas nos cativa sempre, como se se tratasse de observarmos em nós próprios a degradação a que o nosso próprio corpo está sujeito, com suas excrescências, seus fluidos, seus odores, transformações, perversões. Um pouco como Samsa que se descobre feito insecto, esta é a obra mais dolorosa que conheço acerca da metamorfose (que cada um de nós sofre) no insecto derradeiro: a velhice. É uma intimidade física, de cada um com o seu corpo e de cada corpo com o corpo de outrem, a mulher, a mãe, a multidão que nos envolve e a que não podemos escapar.

A DESCOBERTA DE Ó: FICÇÃO E COMICIDADE

Há, frequentemente, uma aparência de "informação" credível nestes textos: em dado momento, observando e ligando pormenores imprevisivelmente ligáveis, Nuno Ramos pára, como se pousasse a caneta, para nos contar um episódio verídico; algo assim: "Isto faz-me lembrar, por exemplo, a história de Ancona Lopes". Ou seja, arranca num tom que conserva toda a verosimilhança. Querem confirmar?

«Vale a pena lembrar uma estranha teoria da inexpressividade, que teve seus dias de glória nos anos 50, em São Paulo. Ancona Lopes, o famoso director do Cambuci, bairro próximo ao centro de São Paulo, oferecia a seus alunos, depois da aula, um princípio da arte de representar que resumia esta teoria à perfeição.».

Nada, pois, a criticar relativamente ao formalismo quase académico desta introdução. Mas é no prosseguimento, e à medida que nos confrontamos com os pormenores rocambolescos e impagáveis da história, que Nuno Ramos nos narra, do pobre Ancona Lopes, que nos apercebemos do logro. Nenhuma das referências é verídica. A comicidade surge, aqui, do facto de uma mais do que improvável fantasia aparecer enquadrada por um cuidado aparelho de pormenores realistas, históricos e biográficos.

CONCLUSÃO

Serve o exemplo referido para que se tenha consciência de que, da mesma forma que o autor varia de tom, de estilo, de género, sem pedir licença, numa amálgama em que tudo são conexões brilhantes e ágeis, também para o leitor de Ó se trata de uma experiência de mutabilidade de estados de espírito: ainda nem bem a minha melancolia se completou, e é já com a angústia que tenho de me haver, a qual interrompo com uma brusca gargalhada que, por sua vez, se transformará num subtil sorriso. Perco-me, reencontro-me, disperso-me, torno a perder-me. Não sei onde estou, mal me lembro de quem sou. Experimento-me outro. Sigo as curvas e a degradação deste corpo desconfortável consigo mesmo. Sou eu? Este corpo parece-se muito comigo. Embora às vezes o estranhe. Aliás, tanto o estranho quando se não parece, como o estranho por tanto se parecer.

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