sexta-feira, 5 de março de 2010

WILLIAM SHAKESPEARE: HAMLET

Eis um bom início para um texto acerca de Hamlet: a primeira vez que o li, fiquei extremamente frustrado. Não podia ter sentido um desapontamento maior. Entendam isto, por favor: esperava imenso de uma peça tão enaltecida, tão unanimemente aclamada. A minha leitura fora precedida por referências fortes, imagens marcantes, uma ideia com algo de mítico - e que podemos resumir, superficialmente, na cena que todos associam de imediato a essa obra: Hamlet, de caveira na mão, entoando as célebres e enigmáticas palavras: «Ser ou não ser: eis a questão!». Esperava, pois, algum tipo de arrebatamento espiritual.

Ao invés do esperado estremecimento fundo, ao invés de sentir que entrava pelo corredor de um «clássico», de uma tragédia nuclear da literatura Ocidental, deparei-me com um entrecho muito fraco, frequentemente ridículo (como em quase todos os momentos em que os homens avistam o espectro) e, como escreveu Jorge de Sena, expondo-se numa verdadeira pirotecnia verbal, tão grandiloquente como pouco convincente.

Na altura, faltava-me - entre outras coisas - saber que um clássico raramente deve ser lido em si; um clássico não pode ser abstraído das significações que atraiu e incorporou, como se se tratasse de um objecto que pudéssemos isolar num frente a frente connosco. É que sobre o texto propriamente dito, o texto em si, o tempo foi depositando subtis camadas de interpretações que o enriqueceram, o completaram e o transformaram. Há sentidos que só poderemos perceber com uma atenção amadurecida, um cuidado que se tenha vindo a cultivar. O tempo fez, de certos diálogos, de certas frases, incontornáveis mitos. E só quando nos dotámos das armas e dos instrumentos necessários, quando nos apetrechámos de tudo quanto nos ajudará a ler nas entrelinhas e a revelar sentidos ocultos, só quando estamos cultural, estética, histórica, psicológica e filosoficamente preparados para reenfrentar algo como Hamlet (e eu não sinto que o esteja, ainda...), é que ele poderá afirmar-se a nossos olhos como aquilo que é, ou em que se tornou: uma tragédia sublime.

Muitos pensadores tiveram algo a dizer sobre Hamlet. Prova de que o(s) problema(s) que sustenta(m) a obra, pela sua profundidade, permite(m) diferentes leituras e infinitas discussões. Qual a natureza da sua relação com a mãe? Será o conflito de Hamlet com o irmão de seu pai, que desposa sua mãe, uma máscara do complexo de Édipo, tal como Freud defendeu?
E que dizer da sua loucura? Não é verdade que, mesmo que tenhamos indícios para a encarar como um embuste e uma estratégia, contém um elemento de inegável autenticidade e, num certo sentido, de extrema lucidez?

Gosto de pensar em Hamlet como sendo um exemplo da figura do "intelectual", típica da nossa cultura.

O intelectual é, antes de mais, o sujeito do pensamento: mas de um pensamento que, pela sua penetração e radicalidade, acaba incompreendido pelos demais, os que vêem nele uma certa inocência, uma certa alienação e a perpétua impotência para se prender ao real e intervir eficazmente; palavras ocas; conhecimentos aéreos: o intelectual é o que acusa e denuncia, sim, mas suscitando mais facilmente o riso do que a adesão.

Todavia, o intelectual é o que nunca se cala: reflecte e dá voz aos seus pensamentos, numa melancolia perfeitamente hamletiana, enquanto as catástrofes se sucedem e o mundo deflagra. É o que interroga a vida, a morte, o bem e o mal. É o que se questiona sobre a condição e a finitude. É o que fala de mais e não age.

Hamlet, como bem sabemos, agirá, a seu tempo. E, por sua vez, agirá de um modo implacável e terrivelmente eficaz. Mas ao longo de toda a tragédia, e até ao seu desenlace fatal, é um jovem que ora não compreendemos, ora compreendemos ao ponto de com ele nos identificarmos. E, nessa oscilação, num ou noutro extremo, é sempre aquele que procura enunciar os seus sentimentos contraditórios e complexos, ao mesmo tempo que procura o caminho da vingança, ou seja, da passagem da consciência ao acto.

Lê-lo é, de cada vez que o torno a ler, uma compreensão mais profunda de Hamlet, Príncipe da Dinamarca. Ou do intelectual. Ou, realmente, do Homem. Ou, afinal, de mim próprio.

1 comentário:

Anónimo disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.