domingo, 18 de abril de 2010

SÁNDOR MÁRAI: A HERANÇA DE ESZTER


É com um estranho sentimento e sentido de veneração que me debruço sobre quase toda a arte que provém do Império Austro-Húngaro: e, no entanto, nada pareceria promissor neste império artificial, gigantesco, reunindo caoticamente diversas etnias, costumes, línguas, interesses, com a argamassa de uma poderosa família (os Habsburgos) e um imenso aparelho burocrático, como Musil refere (e descreve) em O Homem sem Qualidades quando, com algum humor, retrata o funcionamento da "Cacânia".

Porém, contra todas as expectativas, tanto na literatura, como na pintura ou na música, por exemplo, o Império Austro-Húngaro foi um harmonioso viveiro de génio e talento. Do meu ponto de vista, mesmo as contradições daquela cultura com algo de manta de retalhos, e os choques que levariam à I Grande Guerra - são ingredientes que trabalham, no espírito dos artistas austro-húngaros, com um veio de desencanto e cepticismo, uma tristeza que levou muitos ao suicídio, um quase desespero que é notório na obra de quase todos. Veja-se a ficção de Zweig, veja-se o próprio Musil, veja-se Brosch. Veja-se Sándar Márai.

Acabo de ler, deste último autor, A Herança de Eszter.
Na nota de contracapa é identificada uma personagem, Lajos, como «um canalha encantador e sem escrúpulos, dotado de um poder de sedução irresistível». Há, nesta personagem, uma falta de carácter, uma facilidade em seguir a mentira, em nela se comprazer e por ela viver, que lembra José Fouché (e vem-me à memória "Fouché" precisamente por causa da excelente biografia que lhe dedica Stephan Zweig, outro austro-húngaro famoso); neste caso, contudo, a capacidade de burlar, fazendo-se irresistível, como se hipnotizasse as pessoas, é elevado por Lajos quase a uma prática estética, ou mesmo artística e, perversamente, talvez a lei moral.

Odiamos a personagem, o seu modo de usar as pessoas que o querem, que o amam, de não ver a vida senão como risco, perigo e terreno fértil, sem compromissos nem constrangimentos, tudo lhe sendo permitido. Mais: trata-se (e neste aspecto Marái parece-me particularmente interessante e profundo) de um homem que, pela sua maneira de ser, tudo transforma em falsidade, mesmo quando o que diz corresponde aos factos, mesmo quando as suas palavras são "verdadeiras". E, portanto, atingimos um outro tipo de inverdade, que é ontológica, e nem sequer depende já propriamente da correspondência entre o discurso e a realidade. Ao mesmo tempo que o odiamos, porém, não podemos deixar de reconhecer que uma admiração secreta nos aproxima dele, como se a sua hediondez nos hipnotizasse, como se o seu poder magnetizasse o leitor da mesma maneira que a todos os que o envolvem e não lhe resistem.

Alguns romances - e, por exemplo, os de Hermann Brosch ou de Musil, para nos mantermos no interior do campo literário e cultural austro-húngaro, ainda que Marái seja de um azulejo específico, diferente, no interior deste mosaico - vivem da linguagem, ou da descrição, ou da filosofia que os impregna, mais do que da "história": aqui, é quase unicamente da história que se trata; tudo vai sendo sacrificado a uma progressão eficaz, muito rápida, levantando dúvidas, mantendo um suspense em relação à trágica conclusão. Esperarmo-la ou não, prevermo-la ou não, depende, curiosamente, de até que ponto nos parece que Lajos poderá chegar. Um homem que enganou, traiu e roubou, e regressa muitos anos depois, vem para reparar o mal? Ou vem para o terminar?

Trata-se de um romance curto - talvez lhe chamasse uma novela. De uma intensidade que nunca abranda. Se às vezes, nas afirmações, nas ideias, aqui, ali, algo nos soa como déjà-vu, déjà-lu, é, sem dúvida, porque estamos no âmago de uma série de circulações e de influências que constituíram uma parte do que o Ocidente verdadeiramente é. Todos os ecos são significativos, todos os reconhecimentos são produtivos. Trata-se de um grande romance.

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