sexta-feira, 9 de abril de 2010
JOÃO PAULO BORGES COELHO: O OLHO DE HERTZOG
É um livro de História e de histórias.
A História, para já, passa por Moçambique e, mais propriamente, por Lourenço Marques: e digo "passa" porque a cidade em causa se tornaria, na altura, 1919, um cadinho de personagens, culturas e nacionalidades, cada uma delas com a sua agenda oculta, cada uma delas ensaiando, sobre o tabuleiro moçambicano, jogadas da mais diversa ordem, pessoais ou políticas: cada uma, portanto, sendo, ali, naquele momento, uma alavanca de uma História que vinha de mais longe - entre as sobras e as possibilidades deixadas por uma Guerra de que ainda se ouviam os ecos.
Tal carácter histórico do romance é tratado pelo seu autor, João Paulo Borges Coelho, com uma seriedade que o leva a reconstituir fielmente algumas personagens - por exemplo, João Albasini, o jornalista - e, principalmente, a própria cidade: a Lourenço Marques de então, que nos vai sendo dada a provar pela citação de extensas frases publicitárias, que as fachadas dos edifícios ostentariam, e vão pontuando o texto: as pastelarias, os restaurantes, as alfaiatarias, os escritórios; Jolanda, Fábrica de Gelo, Águas Minerais, Frigoríficos, Proprietário Giuseppe Cavallari, ou Dr. Palma, Sífilis e Doenças Venéreas, Doenças das Senhoras, Clínica Geral, Consultório. Percebemos imediatamente que a linguagem dos anúncios (quer sejam verídicos, quer invenções, quer um misto) é, de facto, a da época, mesmo pelo recurso constante às palavras e às fórmulas portuguesas típicas do fim do século XIX inícios do XX; veja-se este plausível e delicioso exemplo: «Casa de João Ramos. Encontram os turistas e quantos após as horas fadigosas de trabalho queiram distrair-se fazer um bom passeio num retiro agradável com belas sombras»; nunca adivinharíamos, antes de chegar a este livro, até que ponto a viagem pela publicidade permite refazer uma cidade, mostrando-no-la nos contornos e nas cores da sua efervescência comercial.
As "histórias", por outro lado: porque, ao longo de uma exigente e cuidada construção, J. P. B. Coelho deixa que o leitor se vá apropriando dos segredos que tudo condicionam - e lançam a própria aventura -, através das histórias que vão sendo narradas ao protagonista: ele próprio, de resto, um indivíduo misterioso, com uma história que só descobrimos incompleta e lentamente, chamado Hans Mahrenholz, mas fazendo-se passar por um tal Henry Miller.
O mais curioso é que - como reconhece Henry Miller, aliás, dado, também ele, a infindáveis digressões e fantasias - é que as histórias que vai ouvindo não se encaixam umas nas outras linearmente. Pelo contrário: cedo verificamos que algumas constituem becos sem saída, desvios inusitados, porventura perdas de tempo: na verdade, nunca o são, porque independentemente da forma como nos aproximem (ou "o" aproximem) ou não do objectivo, valem por si, pelo seu interesse, enquanto outros tantos modos de nos conduzir ao passado das personagens, sobre as quais - dirá alguém - há sempre mais do que uma versão. São também essas estimáveis regressões no tempo que nos levam a Klimt, ou Schiele, ou Picasso. Às vezes, perante a realidade de certas personagens, acontece sentirmo-nos confundidos pela destreza do autor para o embuste, entre o elemento histórico e o ficcional: «E esta pessoa», perguntamo-nos, então, «terá efectivamente existido?».
Por fim, como leitor moçambicano (ou, rigorosamente: de origem moçambicana), diria que este romance traça, de certa forma, uma fronteira decisiva na literatura africana de expressão portuguesa: sinto que outros escritores, que em algum tempo terão sido capazes de nos interessar e de revolucionar a língua em que escreviam, acabaram fixando-se a uma fórmula, a fórmulas. Encantatórias, encantadoras mas, todavia, fórmulas: e, portanto, esses autores ter-se-ão ficado por um idiotismo, com os seus tiques e os seus limites. Ora é aqui, em face de um romance como este, e confirmando com uma passagem que escolho quase aleatoriamente, e cito,
«Ao lado, Gasparini afirmava ter encontrado a solução, ao mesmo tempo que temperava nas chamas de uma enorme fogueira uma panóplia de instrumentos que, dizia, de certeza curariam o doente: alicates, tenazes, punções, trocartes, agulhas. O único problema era a sua indecisão sobre qual deles utilizar. Os oficiais instavam-no a decidir de uma vez, mas ele continuava perdido em obscuras indecisões, olhando os instrumentos em brasa com umas pupilas brilhantes, avermelhadas pelo fogo.»,
que nos apercebemos do que está verdadeiramente em causa: não um "bom romance moçambicano", mas algo que, na sua particularidade, se assume na universalidade que lhe compete: a de grande literatura. Nem mais nem menos.
Observação: o romance em questão ganhou o Prémio Leya 2009. É um pormenor irrelevante no valor da obra.
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