domingo, 11 de abril de 2010

O INFERNO


De um outro blogue meu, recupero, para aqui, este texto que redescubro agora, antiquíssimo, porém, escrito por um eu mais jovem mas já de acordo com aquele que eu viria a ser...


Da brutal Divina Comédia de Dante Alighieri, a última parte, «O Paraíso», parece-me um final insípido para a obra. Mas sejamos justos: insípido precisamente porque quem leu as partes anteriores e se deixou arrebatar por elas não se pode conformar nem satisfazer com uma conclusão que não está à medida da tensão e do prazer (literário, poético, estético) que tinham vindo a crescer em si. Mesmo a parte do meio, «O Purgatório», parece-me insuficiente ou, pelo menos, esquecível. Pelas mesmas razões: falta-lhe a tensão trágica do início, aquela dor que nos toca e comove, a crueldade que tudo impregna e nos dilacera de um modo sublime.
Que início é esse? «O Inferno».

Se as partes finais da Comédia nos parecem desequilibradas e frágeis, se nos cansam, é porque o «O Inferno» já nos deu tudo. Deu-no-lo de uma forma terrível, triste, como se pudéssemos ouvir o choro e o ranger de dentes. Deu-no-lo de uma forma por vezes insuportável, roçando o mau-gosto e a morbidez. Mas deu-no-lo. Poética e dramaticamente, psicológica e filosoficamente, «O Inferno» é uma obra sublime. Só por um equívoco se pode ter pensado que ela deveria - ou poderia - ser continuada. Na verdade, «deveria»: Dante, crente, não tinha alternativa senão mostrar que o inferno não é tudo; que, pelo contrário, para quem escolhe bem, para quem escolhe O Bem, é o céu que se apresenta como a feliz totalidade. Deveria, portanto, tê-lo feito. Mas não «poderia». Porque não lhe era possível superar a magnífica dimensão do seu «Inferno».

Dante é o poeta que nos narra como, conduzido por Virgílio, ali seu guia, morto e jazendo no inferno, visita e conhece os diversos círculos infernais, onde se vão cruzando com as almas condenadas de contemporâneos de Dante, homens e mulheres que, manchados por imperdoáveis pecados, teriam sido lançados no lugar de maldição. É ignóbil, podemos pensar. Com que direito julga Dante os seus contemporâneos, ou os homens do seu passado recente e do passado antigo? Com que legitimidade a sua «visão», o seu poema, lhes condenam as almas?
Dante: «Essa hiena», lhe chama Nietzsche, «essa hiena que uiva por entre as sepulturas»...

Mas o que me fascina no olhar de Dante é um subtilíssimo veio de piedade e simpatia por alguns dos seres que ele vê no inferno, e o misto dessa simpatia apiedada e uma rígida aceitação do implacável plano divino que os castiga para sempre.
Dante «compreende» a ira de Deus, o modo como Ele condena à eterna consumação algumas das almas mais nobres e justas da História? Dante «compreende» que Virgílio esteja no inferno, tal como, aliás, o próprio Platão ou Aristóteles? «Compreende-o» com o seu coração? Não pode compreender, porque os admira, porque aprendeu das suas obras, porque Virgílio foi o seu guia, o seu mestre, o seu duce, aquele com cuja poesia, porventura, aprendeu a ser poeta - mas, não compreendendo, aceita intelectualmente, num acto de fé de profundas tristeza e amargura, porque sabe que, sendo eles anteriores historicamente ao cristianismo, não poderiam ser salvos pela Verdade que, coitados, não conheceram. É uma concepção que nos soa como de uma terrível injustiça. A punição não pune só os maus, pune também os que, inocentemente, não conheceram a Luz. Não que a tivessem recusado: somente porque não foram do tempo histórico em que ela se ofereceu aos homens.
Mostra-nos esse sentimento de piedade um outro momento tremendo do poema: quando Dante vê, no círculo dos que cometeram adultério, duas almas enamoradas que, na pena eterna, na infelicidade eterna, têm, pelo menos, a felicidade de haverem permanecido eternamente juntas. Mas não é extraordinária a comoção que invade Dante, quando a história dos dois jovens pecadores lhe é narrada, a beleza que irradia desse seu acto em vida, ao mesmo tempo pecaminoso e amoroso? Não é extraordinária a forma como, por fim, Dante desmaia, como esmagado pela sublimidade daquele sofrimento?

É um inferno sombrio, apaixonado, cruel, de castigos extremos, de torturas terríveis. É um inferno onde o mal se nos apresenta carregado de tensão e dor. Sonhamos com ele. Assombra-nos. Distorce-nos os pesadelos e a imaginação. Nunca esqueceremos determinadas figuras da dor e do arrependimento.
É um poema magnífico onde - Jorge Luis Borges, mais do que ninguém, chamou-me a atenção para isso - as frases podem ser lidas segundo interpretações que se sobrepõem sem se anularem e, às vezes, anulando-se. É um inferno em que tudo tem de ser compreendido a uma luz muitas vezes diferente da luz da aparência: é o mesmo Borges que nos afirma que o pecado pelo qual se castiga Ulisses não é o pecado de que, à primeira vista, ali se fala, o da fraude: é antes um outro pecado, um pecado oculto, que nunca chega a ser dito e o leitor pode nem sequer descobrir.

É um poema com várias leituras possíveis: uma, histórica, uma, puramente estética, uma, filosófica, uma, religiosa. Ou uma múltipla.

Dir-se-á que a menos viável, hoje em dia, é a religiosa. Que nem mesmo uma pessoa crente poderá crer no inferno de Dante. Do meu ponto de vista, é um erro. Para mim, que não sou religioso, que me pavoneio no mais frio e racional ateismo, a leitura religiosa do «Inferno» é inevitável: o impossível inferno torna-se-me presente, indiscutível, e creio nele enquanto os meus olhos seguem os versos impressionantes.

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