sexta-feira, 16 de abril de 2010

MACHADO DE ASSIS: DOM CASMURRO

Florinha Afável, leitora brasileira de que sou, por minha vez, leitor constante, lançou-me um desafio a que seria indelicado não replicar. E, realmente, injusto: «Para quando, José Pacheco», assim me perguntava, «o seu comentário a um autor brasileiro?»

O Brasil possui, e não o digo para agradar mas para deixar que me situem claramente desde o princípio deste texto, em áreas cruciais da cultura, algumas das melhores expressões no mundo inteiro. Curiosamente, por uma infeliz conjugação de factores, os portugueses, que falam a mesma língua e podiam ter o privilégio de conhecer bem esses casos e essas expressões da arte e da cultura, conhecem-nos geralmente mal; sabem que o Brasil tem alguma da melhor e mais bonita música que se faz no mundo inteiro, é certo, mas lamuriam-se da "injustiça" daquilo a que chamam uma «troca desigual», um intercâmbio desequilibrado; não sabem, porém, que tem uma das melhores imprensas escritas; ou um dos cinemas mais vanguardistas; ou um teatro riquíssimo. E nem sequer muitos de entre os portugueses mais cultos têm noção de que a filosofia é muitíssimo bem tratada no Brasil, e de que algo como «filosofia brasileira» é uma expressão que remete para uma actividade vasta, contínua e muito interessante; em suma, os portugueses tendem a reduzir a cultura brasileira à telenovela, que apreciam bastante. E ao Carnaval, que vão copiando em pequenino. Acerca da literatura que o Brasil tem produzido ao longo da História, por exemplo, tudo são, por cá, ignorância e sombras.

Era aqui que eu queria chegar. Eu próprio, tão lesto a criticar, conheço pouco e mal, e disso já por aqui me auto-critiquei, os "novíssimos" da Literatura Brasileira. Procurarei corrigir. (Talvez nesse ponto, aliás, as sugestões dos leitores brasileiros deste blogue possam fazer luz sobre caminhos a pesquisar...).

Entretanto, dos mais antigos, escolho sem hesitar um autor cuja obra considero moderníssima. Falo de Machado de Assis.
E de entre tantos livros notáveis, nomeadamente Memórias Póstumas de Brás Cubas, que é uma obra maior, opto pelo maravilhoso Dom Casmurro. Acho difícil compreender como um romance possa ser, simultaneamente, tão inovador (ainda hoje) e tão atraente. O inovador não é quase sempre aquilo que temos de lutar para perceber, o desconfortável, na medida em que põe em causa os nossos hábitos, as formas adquiridas de ler? Pois bem: Dom Casmurro prende-nos do princípio ao fim: frases curtas, capítulos muito curtos e uma história encantadora, repassada de filosofia, melancolia e ironia.

O que me parece verdadeiramente extraordinário é, porém, o efeito conseguido por Machado de Assis ao pôr-nos perante um narrador que é o próprio protagonista: é, portanto, Bentinho que nos conta as circunstâncias do seu nascimento que, já inesperado, seria tido por um milagre; a sua paixão e luta para conquistar Capitu; e, chamemos-lhe assim, a grande dúvida que surge como por acaso, mas alastra e cedo se tornará o centro de gravidade do romance.

Claramente, não conhecemos a verdade - e, a todo o momento nos compenetramos de que estamos sempre em face da visão de Bentinho, da sua interpretação dos factos, errónea ou não, plausível mas nunca definitiva, porventura cega pelo ciúme ou pela insegurança.

Ora é essa maneira de construir uma história na primeira pessoa, assumindo a dúvida e, ao mesmo tempo, a impotência para alguma vez resolver definitivamente essa dúvida, que toca aquelas páginas de um cepticismo e de uma oscilação entre possibilidades opostas - à luz dos quais podemos entender perfeitamente a dramática ambiguidade de sentimentos de Bentinho em relação a Escobar, seu amigo, ou Bentinho em relação a Ezequiel, seu filho.

Algum crítico afirmou que, nessa medida, se torna possível reler o livro segundo diferentes interpretações e, de cada vez, chegando a uma conclusão diversa. Tanto eu não diria. Em nenhuma das leituras que fiz me consolei com uma única conclusão. Em qualquer das vezes, as conclusões estavam todas presentes numa inconclusão que me deixou estupefacto. Todavia, isso sim, em cada uma das leituras, Dom Casmurro me apareceu como um livro que tudo me parecia perguntar - e não saber responder -, mas sempre com a mesma força, a mesma alegria levemente angustiada, o mesmo poder.

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