Se tiver em mente Um Estranho numa Terra Estranha [título fabuloso, não é?], livro que continuo pacientemente a "grocar", ou a tentar "grocar", situo-me logo numa questão sobre que duas personagens conversam, que é a da quase impossibilidade de tradução de "marciano" para as línguas terráqueas, em particular o Inglês, e vice-versa. O especialista em marciano refere que o problema é que, em grande medida, a própria língua decide o que posso verter em outra língua, uma vez que há um mapeamento definido por aquela que me proponho traduzir: definido por palavras que só fazem completamente sentido no interior dos modos de vivência ou das categorias existenciais inerentes ao mapa mental em que essa língua foi inventada. Mudar de língua, traduzir, não é apenas mudar de língua. É trair, de facto, porque exige, subrepticiamente, que mudemos de mapa mental.
As experiências e a realidade de um inglês ou de um italiano ou de um francês contemporâneos são, até um certo ponto, similares. As analogias parecem-me possíveis. Não haverá uma intraduzível mudança de mapa. Do japonês ou do chinês para qualquer língua ocidental, já seria menos fácil. Que fazer, então, sem cair em anacronismos ou sem depreender semelhanças aparentes, que ocultam profundas diferenças, quando se trata de traduzir os textos da Grécia Antiga ou da Antiga Roma? As similaridades existem. Sem dúvida. Somos todos humanos, enfrentando problemas de sempre. E herdámos o seu legado de um modo tão evidente, que a possibilidade de reconhecimento tem de existir. Mas quanto às linhas que perdemos, soterradas sob tantas transformações, culturais, religiosas, de visão do mundo? Como reencontrá-las de forma a mapear o que um Grego ou um Romano queriam dizer - ou melhor: podiam querer dizer - no interior do mapa em que se exprimiam?
E é aí que um tradutor - falo aqui apenas na qualidade de tradutor de um autor que é muito mais do que isso: o professor, o romancista, o helenista - como Frederico Lourenço faz uma diferença evidente. As suas interpretações de Odisseia e de Ilíada são trabalhos exaustivos e profundíssimos de compreensão de uma mentalidade e de um modo de vida. Atestam-no as introduções, as notas-de-rodapé, as explicações que enquadram e nos afastam do nosso próprio mapa cultural. O mesmo relativamente à sua tradução do Antigo Testamento (e, depois, do Novo), mas também não é do que aqui venho falar. Nós não somos um Grego. Nós não sentimos nem pensamos como Homero, nem como Homero pensa que pensariam Ulisses ou Heitor. Estamos em outro mundo. E se nos encontrássemos, viajando no tempo e sabendo falar grego, ainda assim, porventura, comunicaríamos pouco ou mal. Porque falar grego antigo, e até dominando variações de comunidade para comunidade, não é apenas falar grego antigo. É falar um mundo que já não nos pertence. E acredito que FL nos devolva, incólume. Enfim, quase incólume.
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