quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

MARGUERITE DURAS: O AMANTE

 

Alguma coisa na escrita de Duras começa por participar, para o leitor, da ideia de milagre (embora eu venha abusando da palavra "milagre" e esta palavra seja a última a poder ser banalizada). Mas há nessa escrita uma simplicidade tal, e de tal forma no limiar da oralidade, que se torna difícil compreendermos de onde pode aí nascer uma profundidade, uma riqueza, um dom de nos surpreender, que é constante e, nessa medida, parece advir sem esforço. O dom da linguagem de MD não resulta de uma busca, nem de algum artifício. 

O que nos prende na Autora é que tudo se move em torno de um modo específico de tornar fluidas as oposições: é ficção, mas o carácter real e confessional dos seus romances, se assim lhes posso chamar, tem um peso que sentimos bem; é duro, mas a dureza não cai no cinismo, oculta e revela uma sensibilidade fina: sabemos sempre que lemos a exposição de uma vida marcada.

Por fim, uma espécie de despudor, que nos perturba um pouco. A presença e a respiração  de uma sexualidade na sua infância, ou na adolescência, e dos abusos a que elas conduziriam. Da mesma forma que o seu rosto, que já era na juventude um rosto de velha - também, nela, a sexualidade é vista como uma doença prematura. De que se trata, precisamente? Não é a beleza, nem o encanto. "O lugar do desejo" ou "o rosto do prazer", designa-os ela: "Tal como tinha em mim o lugar do desejo. Tinha aos quinze anos o rosto do prazer e não conhecia o prazer. Esse rosto via-se muito. Mesmo a minha mãe devia vê-lo. Os meus irmãos viam-no."


Mas ninguém  como Duras para, sobre isso, sobre esse desejo e esse prazer pressentidos, prematuros, impudicos, provocadores, recordar e capturar a vida frustrada de todos, adultos e jovens, a tristeza de sua mãe, mesmo nos momentos de alegria, aquele "'desespero tão puro", aquele "desencorajamento de viver." 


Em tudo identifica os sinais: no modo de vestir, por exemplo - o desleixo no modo de vestir da mãe, como um abandono, ou (no caso da menina de quinze anos e meio que era ela própria) a incongruência de um chapéu e de uns sapatos de lamé como um acto de sedução ainda não inteiramente consciente de si; os sinais são a revelação de sentimentos, atitudes, expressões da vida. Os planos concebidos para os filhos reduzem-se a sinais. Ou simplesmente as poses para a fotografia. (Admirável descrição).


Ou ainda os sinais da pobreza envergonhada, talvez a mais terrível das pobrezas.  Os sinais de uma relação familiar fracturada, perpassada pela má-fé, por fim destruída e nunca refeita, nunca recomposta. 


Este livro é também uma investigação dolorosa à memória, uma pesquisa metódica da parte do amor e da parte do ódio que sempre coexistiram; um mergulho na escuridão da adolescência. Mas sem salvação, nem resgate. Sem perdão.  Um mergulho desencantado. 


1 comentário:

CCF disse...

Sou leitora apaixonada dos livros dela, talvez os primeiros que li sem conseguir parar, muitas vezes pela noite dentro.
~CC~