Um Estranho numa Terra Estranha é avassalador. Era jovem de mais quando o descobri. Tinha noção de que Valentine Michael Smith, o protagonista, fora amado pela geração hippie como um precursor, um homem de uma inocência total, um outsider, verdadeiramente. Mas tratava-se de uma referência distante, que não teve peso na forma como então li o romance de Heinlein. Ele leva-nos não apenas ao reconhecimento de um homem ingénuo, quase idiota (se pensarmos na figura de O Idiota, de Dostoievski), mas da busca, iniciada por essa personagem, de uma compreensão sem arestas nem sombras; do "grocar" da realidade estranha e nova com que deparava, sendo o neologismo usado como uma tradução impossível - ou que palavra empregaríamos? - do verbo "to grock", com que Heinlein inventa um termo para essa absoluta coincidência espiritual entre o sujeito que conhece e o objecto conhecido.
Mas se Valentine Michael Smith é de uma enorme candura, ele possui um tremendo poder (que não sabe quando usar, entre os terráqueos, e que, é claro, também terá tido o valor de um símbolo, para os hippies e todos os rebeldes que tomavam este romance como uma nova bíblia). Em todo o caso, quando, na fc, os aliens apareciam sempre como os radicalmente "Outros", incompreensíveis e aterrorizadores, é encantadora esta personagem de um marciano (de facto, um humano que nasceu e viveu até tarde entre os marcianos, daí a designação de "o homem de Marte"), com a delicadeza e as boas intenções que os habitantes da terra quererão usar em seu proveito e manipular. Por uma vez, o alienígena não será o monstro.
Vejam só a beleza do início: "Era uma vez um marciano chamado Valentine Michael Smith." Está lá o "era uma vez", que nos remete para a incredibilidade de uma mera fantasia, o "Valentine", nome do padroeiro dos namorados, o "Michael", como o arcanjo, e o "Smith", como todos nós, o senhor todo-o-mundo, o anónimo, o ninguém especial. E não é verdade que na sua aparente simplicidade, esta primeira frase nos agarra como nos agarravam, na infância, os "era uma vez" das histórias que nos contavam?
Os indígenas do planeta terra, chamemos-lhes os terráqueos, não são necessariamente más pessoas. Apenas indivíduos produzidos pelas suas culturas, pelas convenções em que crêem, e pelos cálculos materiais que aprenderam a fazer, e não talvez por mal, nem por
egoísmo ou por serem interesseiros, mas porque a sua moral contém desde sempre a ideia terra-a-terra de que um homem bom é um homem esperto, e as boas pessoas são as que se amanham, ainda que à custa dos outros. Que diabo, nem todos podem ser Kant. E, como diriam os meus alunos, Kant não serve para a existência quotidiana.
egoísmo ou por serem interesseiros, mas porque a sua moral contém desde sempre a ideia terra-a-terra de que um homem bom é um homem esperto, e as boas pessoas são as que se amanham, ainda que à custa dos outros. Que diabo, nem todos podem ser Kant. E, como diriam os meus alunos, Kant não serve para a existência quotidiana.
Os diálogos, extensos, que transformariam rápida e facilmente em uma peça de teatro o romance, nunca cansam. São profundos e divertidos. A conversa entre Jill Boardman e Jubal Harshaw, esse misto de cínico e de epicurista dos tempos modernos, tem o witt e a fluidez de um típico diálogo escrito por Oscar Wilde. As réplicas deste homem, que parece não se interessar por nada senão pelo seu bem-estar, mas se decide a um último arremedo de crença na moral e na justiça, apoiando Valentine Michael Smith, são de uma sagacidade e de uma penetração mordazes e agudíssimas.
Um Estranho numa Terra Estranha é também, tanto quanto recordo (e com isto estou a dizer que a minha releitura ainda não chegou a esse ponto) uma história de amor particularmente deliciosa. Com um beijo de se perder a respiração. Um beijo com uma tal concentração da energia na experiência, como nenhum humano da terra aprendeu ou seria capaz. Grocaram?
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