quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

IRENE VALLEJO: O INFINITO NUM JUNCO

 Considero os livros um bem de primeira necessidade, evidentemente. E penso que qualquer livro que tenhamos lido se nos tornou imprescindível: porém, no concreto, poucos livros são imprescindíveis a priori, no sentido em que, se não tivesse descoberto Gulliver, por exemplo, ou Ravelstein, ou, sei lá!, Moby Dick, viveria sem eles. Poderia viver sem eles. Já Em Busca do Tempo Perdido é um livro  que deveria, teria de ler: não o ter conhecido seria uma perda terrível, ainda que nunca viesse a sabê-lo. Não se equivoquem em relação ao que dificilmente tento exprimir. Não que as outras sejam obras menores; acrescentaram muito à minha cultura: no entanto, se os não tivesse lido, teria lido outros - que os não substituiriam, é certo, mas seriam diferentes escolhas, outros possíveis, num mundo literário onde, infelizmente, já sei que não poderei ler tudo.



Se há, recentemente, um livro que considero absolutamente imprescindível, é um pequeno milagre de uma espanhola chamada Irene Vallejo: O Infinito num Junco. Basta gostar-se dos livros e do acto de ler, para que este livro sobre livros e sobre o acto de ler nos ofereça um conhecimento histórico que nos permite pensarmos sobre o que fazemos quando pegamos num romance, abrimos a capa e seguimos os caracteres através de que encetamos esta escuta de alguém que não nos ouve, talvez tenha até morrido, mas, no entanto, nos fala, descreve, narra. Nos põe perante pessoas, vidas, lugares.


A leitura é a tal ponto um acto simples e habitual, que nos esquecemos de que tem de ter uma história. 


Quando a humanidade inventou a escrita (e fê-lo diversificadamente: ora escritas com uma descendência, que se reconstituíam em novas formas, ora outras que eram inventadas paralelamente); quando as elites dominavam a técnica  (escribas, sacedotes, intelectuais); quando a técnica se propagava entre outros leitores - a leitura era, e foi durante muito tempo, um acto utilitário, não um acto de prazer. E um acto rígido, intermediado pela boca e pela voz - toda a leitura era leitura em voz alta - e não o acto de absoluta intimidade, no silêncio, no recolhimento, que hoje praticamos, entre o leitor e o seu livro.


Ora O Infinito num Junco, cujo subtítulo é, precisamente, "A invenção do livro na Antiguidade e o nascer da sede da leitura", conta-nos eufórica e minuciosamente essa riquíssima História. O aparecimento das escritas nos seus contextos culturais, a escolha do melhor suporte, desde a argila, o papiro e o pergaminho, ao papel, a criação das bibliotecas, as excursões, nas mais inóspitas condições, para se reunirem todas as obras então conhecidas, o amor dos grandes guerreiros pelos livros, que os guiavam e lhes ofereciam modelos de vida, os livros sagrados, os livros iconoclastas. É uma história absolutamente maravilhosa, de lutas, paixões e mudanças, de uma sede que se foi descobrindo, um prazer que teve de se inventar. É sobre essa trama que, inconscientemente, se sustenta o acto com que eu, com certa negligência, retiro um livro de uma prateleira, acerto a luz do candeeiro na medida exacta, me sento, o abro e, secretamente, mudo de realidade.

2 comentários:

sonia disse...

Comungo com você todas as letras de seu texto. Obrigada!!!

josépacheco disse...

Obrigado eu pela sua leitura.