segunda-feira, 10 de janeiro de 2011
GONÇALO M. TAVARES: MATTEO PERDEU O EMPREGO
O último romance de Gonçalo M. Tavares, Matteo Perdeu o Emprego, é, como todos os livros do autor, primeiro que tudo um exercício lúdico. Gonçalo M. Tavares procura, por um lado, desmontar as máquinas que possui no quarto, como um garoto traquina que vê, no relógio ou no guindaste que a tia lhe ofereceu, uma possibilidade de desarticular, de arrancar peças, extrair as agulhas e as rodas dentadas; assim procede com a tradição literária, que herda e se entretém a esventrar; mas, ao mesmo tempo, comporta-se como um jovem Edison que se interessasse por saber o que pode juntar a partir do caos que provocou, quais os elementos que imprevistamente encaixariam, quais os órgãos mecânicos que produzem faísca. Desfaz e refaz, destrói para reconstruir com uma frescura alucinante.
Poderia referir Lewis Carroll como um dos inspiradores desta loucura experimental e criativa. Mas existe, em Carroll, um tom inocente, revelador de que as suas histórias não querem amedrontar as crianças a que se dirigem. Os males estão domesticados. Há um lado de «faz-de-conta» e brincadeira que torna as mais estranhas peripécias numa espécie de jogo. Em G.M.T., pelo contrário, sentimos, sob cada frase, a vibração de perigos malvados, o movimento oculto de monstros tenebrosos. Quando a Rainha, em Alice no País das Maravilhas, grita «Cortem-lhes a cabeça!», não nos assustamos, rimo-nos. Alice não a teme, responde-lhe, nem sempre bem-educadamente. A Rainha não é terrível, é cómica. Os textos de G.M.T têm sentido de humor, sem dúvida. Mas esse humor é cáustico e perverso; não nos faz simplesmente rir: atemoriza-nos um pouco.
A linguagem dos seus romances é profundamente poética; os aforismos, na maior parte dos casos geniais, são bandeiras que vai cravando, e remetem para um saber severo, sério, em que tendemos a crer. Mesmo quando se trata de um saber irónico, que se mina a si próprio por dentro, há um efeito e uma atmosfera sagrados, que nos impressionam. Matteo Perdeu o Emprego é tudo isto: um jogo irresistível, a partir de uma série de dispositivos brilhantes, que fazem com que funcione como um conjunto de contos minúsculos, autónomos, atómicos, que, todavia, buscam uma ilusória unidade, como se fossem capítulos de um continuum. «Ilusória»: o que liga um capítulo ao outro é um elemento irrelevante, artificial - o aparecimento, em dado ponto do capítulo, de uma personagem que será a protagonista do capítulo seguinte. E cada protagonista vale pela estranheza de um certo comportamento seu, um hábito que inaugure o conceito central desse capítulo.
Mas Matteo Perdeu o Emprego não é só um livro: é, enquanto objecto que seguramos nas mãos, um objecto de arte: as fotografias de manequins (bonecos articulados que exibem roupa, nas montras) constituem, também, separadores, e pedem uma outra forma de leitura, exigem leituras que se cruzem, se demorem no olhar, na pele, nos dedos. Convocam inesperadas sensibilidades e ressonâncias, misturam formas e artes. A leitura de qualquer obra de Gonçalo M. Tavares é sempre, em vários aspectos, diferente de uma simples leitura.
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2 comentários:
Enquanto vou passeando pelas páginas de "A Máquina Robert Walser" do Gonçalo M. Tavares, vou-me lembrando do senhor Palomar, mas também numa obra excepcional do inspiradíssimo Giorgio Manganelli, "Centúria-cem pequenos grandes romances", autor que o Gonçalo refere no seu "O senhor Eliot e as conferências".
Gosto muito daquilo que o José tem sublinhado na prosa do Gonçalo, que me parece cada vez mais um autor enorme, um trinfo da literatura portuguesa.
Uma correcção ao comentário que fiz antes: o título do livro do Gonçalo M. Tavares que ando a ler não é "A Máquina de Robert Walser", mas sim "A Máquina de Joseph Walser".
Peço desculpa pelo equivoco.
abraço.
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