Nenhum livro pode ser visto tanto como um jogo, quanto um romance policial. E é por isso mesmo que, desse ponto de vista, o seu autor tem algo de um inventor de jogos. Alguns, naturalmente, escreveram livros ao nível do jogo do galo, nada mais. Mas Ross Macdonald apresentou, em matéria de policial, o xadrez. Nada menos.
Escrevi, em outro post, que os seus textos têm, também, uma grande consistência literária. Podem duvidar. Mas apraz-me mostrar um par de exemplos. O narrador, um detective profissional, descreve o cliente, que acaba de conhecer: " Keith Sebastian saiu da casa em mangas de camisa. Era um um homem elegante, nos seus quarenta e tal, com espesso e encaracolado cabelo castanho, grisalho nos lados. Estava ainda por barbear, e o seu crescer de barba parecia sujidade fibrosa, que tivesse sido esfregada no rosto". Ou, mais tarde, a propósito do mesmo Sebastian, com quem fora falar, no local em que este trabalhava, e onde uma secretária lhe disse que o ouvira chorar: "Eu gostava mais de Sebastian desde que soubera que ele tinha lágrimas dentro da sua cabeça encaracolada".
Um último pedaço:
"Eu sei isso", disse ela, impacientemente. "Vai tentar?" Pressionou ambas as mãos sobre o seu peito, e depois ofereceu-mas, vazias. A sua emoção era, ao mesmo tempo, teatral e real".
Da mesma forma, descrevendo, não só as personagens, mas o interior das casas, ou as vilas, ou as cidades, Ross Macdonald consegue a proeza de fazer com que as vejamos e, mais do que isso, com que gostemos de as ver: com que, lembrava ainda ontem o meu primo, nos apetecesse estar mesmo lá.
Nada disto constitui o conjunto dos pormenores ignoráveis do jogo: tais pormenores conferem-lhe, pelo contrário, uma credibilidade e uma espessura sem as quais teria menos interesse jogá-lo.
Mas o jogo, em si - e cada novo romance é um novo, diferente e completo, com um mecanismo de relógio no seu interior, subtil e engenhoso - depende de uma conjugação perfeita dos elementos. O leitor é enganado. Deve pensar por si, para chegar a uma solução, e faz parte do jogo que o conduzam para a solução errada. Ou não se deixa enganar. Ou, o que frequentemente acontece, é alguém que desconfia; está sempre com um pé atrás, e luta para que o não enganem: ora quando mesmo este tipo de leitor, de segundo grau, percebe, no fim, que o detective - e o autor - antecipou os seus juízos menos óbvios, e os usou, honestamente, para vencer, é porque o detective - e o autor -, sem passes de magia, sem vozes divinas, é realmente do melhor.
Ross Macdonald é, realmente, do melhor. Talvez, até, um pouco mais: no policial, ele é o melhor.
2 comentários:
Estou ávida para ler romances policiais diferentes...
Espero que os romances de Ross MacDonald sejam tão bons quanto os de James Ellroy!
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