sexta-feira, 19 de março de 2010

MARGUERITE YOURCENAR: MEMÓRIAS DE ADRIANO



Devo dizer que, relendo os meus próprios posts, narcisicamente, um pouco ao sabor do tempo que às vezes tenho para gastar, dei conta de que escolhi poucas obras de mulheres. Poucas? Uma única. Não que haja, nas minhas selecções, livres e espontâneas, qualquer necessidade de cumprir quotas ou qualquer compromisso ideológico; apenas penso que uma quase total exclusão de autoras não representa justa e fielmente o meu universo de gostos literários. Não o afirmo, repito, para me manter num registo politicamente correcto. Então, e Sylvia Plath? Simone de Beauvoir? E Marguerite Duras? Adília Lopes? Ou Flannery O'Conner, cujos contos me cortam a respiração?

Mas se quisesse falar do livro de que mais gosto de um autor do sexo feminino, há que confessar que escolheria uma obra que, a vários títulos, revela pouco do feminino. Ou estarei, porventura, enganado - e, sei lá, até mesmo quando veste uma personalidade de homem, para escrever, em nome dele (como narrador), uma «autobiografia imaginária», uma mulher o faz como só uma mulher seria capaz de o fazer; e talvez que a sensibilidade, a curiosidade, a própria reflexão feitas, por certa mulher, sob a capa e a imagem de um homem, sejam, ainda e sempre, uma sensibilidade, uma curiosidade e uma reflexão fundamentalmente femininas.

Em face da obra em que penso, em todo o caso, tal questão parece diminuir até à pura irrelevância. Porque se cura aqui de um livro extraordinário, seja qual for o género do autor: Memórias de Adriano, de Marguerite Yourcenar.

Como se sabe, teria existido, com efeito, uma autobiografia de Adriano, a qual, porém, nunca chegou até nós: mas pela voz de Yourcenar, Adriano, «avistando já o perfil da morte», inicia uma carta a seu filho (o futuro imperador Marco Aurélio), em que nos vai abrindo, uma a uma, as portas da sua intimidade, numa melancólica viagem pelo seu passado, pelos seus amores, pelos seus remorsos. O saber de que este texto está imbuído e a delicadeza retórica da sua expressão fazem com que nos embrenhemos com um deleite que muito poucas outras obras proporcionam. Assim, de repente, sem uma análise profunda, sou capaz de me lembrar de outras quatro, não mais: Em Busca do Tempo Perdido, À Espera no Centeio, Viagem ao Fim da Noite e O Inferno, da Divina Comédia; por uma ou outra razão, ou por várias razões simultâneas, são, todos eles, livros com esse poder de encantamento: de levar o leitor a esquecer inteiramente tudo o que não é a página que no momento está lendo; de o levar a tornar-se o próprio livro que segura entre as mãos. (Talvez encontrasse mais casos: mas não tão segura e imediatamente como aqueles que referi).

Alguém dizia, uma vez, que Memórias de Adriano é uma obra que precisa de um tempo certo, uma maturidade, uma disponibilidade, uma paciência muito particulares da parte do leitor. Quem o disse (sei exactamente quem foi, aliás: Ana Drago, numa entrevista acerca dos livros da sua vida) precisara de começar, re-começar, em diferentes momentos e situações, por cinco vezes, até ter autorização para entrar, se prender às palavras e seguir o rio. Sucede. Haverá desacertos, equívocos, falsas partidas. Mas vale a pena esperar. Vale a pena tentar uma vez mais. Se há livros que merecem toda a paciência e todo o tempo do mundo para que se descubra o tempo certo para nos entregarmos a ele, este é um deles.

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